O filho não pagará os pecados da mãe
Sábado, 5 de março de 2022.
Entro calmamente porta adentro. O assoalho de madeira ecoava os passos do meu coturno e anunciava a minha presença. Fui avistado prontamente por ela, que sabia haver algo errado - isto porque pedi ao meu pai avisá-la que precisaria conversar com ela e minha querida avó. O assoalho continuou a melodia harmoniosa de passos calmos, como tentava se manter igualmente o meu coração, com algum sucesso. Cumprimentei a todos com o carinho verdadeiro que carrego comigo.
Meia volta dada, percorri a sala em direção ao quarto da minha avó, que, deitada, aguardava. Alguns instantes depois a minha mãe chegou, e pude dar voz ao que estava apenas dançando na minha cabeça.
Contei tudo. E nesse tudo houve tanto reviravoltas de uma tragédia shakespeariana quanto as luzes de um livro de Chico Xavier. E pedi que nada julgassem; por enquanto se faz isso, perder-se-ão detalhes. Estes, como nas mais básicas teorias cinematográficas, mostrar-se-ão preciosos nas cenas seguintes.
Comecei chorando, mas não tardou para que a minha fala ganhasse contornos firmes e organizados; porque o objetivo de tudo aquilo era passar uma informação: a de que não mais retornaria.
Ao fim de minha fala, obtive duas reações: uma esperada e outra nem tanto. Uma de preocupação, que tratei urgentemente de amenizar e provar desnecessária.
A outra, no entanto... Foi de raiva. Raiva por um filho chamar uma mãe para conversar sobre as suas mazelas, mesmo que tenha sido deixado claro serem apenas condições sine qua non para o anúncio da minha partida. Raiva? Pior, raiva descanalizada. Raiva por um elemento que eu esqueci de acrescentar no meu plano: burrice alheia. Incapaz de ouvir e entender que um parente não quer dar adeus aos outros sem motivo; entendeu como um ato de jogar os problemas do mundo nela.
E, ao fazê-lo, destratou-me. E não queiram me ver assim.
Por vinte e seis anos tenho tido uma mãe que fica bem comigo na seguinte cronologia:
- 1 ano bom, 3 brigados.
- Seis meses ótimos, vinte dos piores.
- Uma semana me sentindo um filho, um mês me sentindo um fardo.
E estou farto disso. Opto, portanto, por encerrar a relação de vez com a progenitora. Afinal, eu era só um garoto; e toda vez que vinham os momentos bons, a longa duração dos péssimos me destruía; porque eu tinha esperança. Isso não se faz a um garoto.
Hoje, um homem, sei lidar com a quebra de esperança. Mas a julgar que, com a idade, ela vem de todos os lados; simplesmente não quero mais carregá-la em relação à pessoa que me segurou por nove meses para me despejar em um mundo feio e sujo; apenas para me jogar no meio, como se fosse um cuspe.
O filho não pagará os pecados da mãe. Até porque ela não existe mais no coração dele.
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