Conto: A longa duração
Há que se
dizer que tenho medo deste mundo. E não infundada é essa afirmação, ou linha de
raciocínio; ou mesmo visão da realidade, se assim desejar colocar. Isso digo a
você, pois não tenho interesse de fazer uma dentre inúmeras escolhas que levam
ao mesmo ponto.
Mas,
falando nelas, houve uma que, se não tomada, não levar-me-ia do ponto A ao
ponto B.
Eu me
chamo Herlton Shelly, e, após morar um tempo aqui e outro ali; ganhei de minha
avó uma das divisões da casa que alugava para os mais variados inquilinos.
Vila, assim podemos dizer. Também posso colocar da seguinte maneira: uma
sensação de esboço de completude formou-se sob mim. Sob, pois em meu âmago
sentia isso, apesar de não externalizar qualquer otimismo em excesso. Esboço,
pois a vida é longa – ao contrário do que muitos levianamente afirmam – e ainda
havia muitos caminhos por onde engatinhar.
Deixe-me
explicar. Eu entendo a obviedade de que partimos deste mundo e deixamos muitas
pontas soltas; não apenas não finalizadas, mas mal iniciadas. Isso, porém, não
ocorre porque a vida é curta; mas porque somos medíocres – para dizer o mínimo.
E, quando vejo uma grande pessoa, noto prontamente que houve – e não há
hipérboles nisso – concretude e completude em sua jornada. Como sempre, os
fracos culpam o universo pela sua própria existência.
Agora,
permita-me iniciar o que tenho para iniciar. Caso contrário, acabarei por me
queixar do quão curta, quiçá, é a existência humana. Eu sou Herlton Shelly, e me
foi emprestado um ótimo canto para morar, no enorme espaço que pertenceu aos
pais de minha mãe. E lá, não hoje e não no tempo que estou a narrar, mas antes
de meu primeiro respiro asmático; há histórias de meus pais, tios, primos de
segundo grau e avós. A vida passa, e o que satisfazia não mais o faz. Todos
procuraram imóveis mais confortáveis, seguros e que satisfizessem quaisquer –
novas e antigas – necessidades de cada subfamília que nascia da grande. Não
posso dizer que uma boa localização era uma nova necessidade, pois esta casa
antiga sempre foi, e continua sendo, das mais bem localizadas que uma pessoa
bem nascida poderia almejar. E disso decorre que, assim que um inquilino parte,
basta aguardar o tempo que leva para o feijão florescer no algodão, para que
surjam verdadeiros interessados em alugar.
No pedaço
temporal que estou narrando eu ainda era jovem. Não sábio, mas longe de
desconhecer o bastante do mundo. Mas, como não podia deixar de ser, há sempre
espaço para mais. Eu havia entendido coisas que considerava básicas, mas que
pareciam propositalmente deixadas de lado pela juventude medíocre que dividia
espaço comigo no cosmos. Como todo conhecimento, os que adquiri fizeram de mim
um ser menos provido de felicidade. Quando coisas boas aconteciam comigo, eu
era preenchido de satisfação; mas nunca poder-se-ia dizer que me sentia feliz.
Pelo contrário, os raros momentos de felicidade eram exatamente aqueles em que
eu me rebaixava ao aspecto mundano dos medíocres. A futilidade, quando eu semi-conscientemente
deixava passar, fazia-me sentir alegre novamente. De resto, completude e
satisfação.
E,
satisfeito, antes de mudar-me em definitivo, levei diversos itens meus pessoalmente,
ao longo de semanas; antes do dia do pequeno caminhão de mudança levar os
móveis. Isso porque sou uma pessoa sozinho. Não sei bem definir se sozinho
porque provido de alguma sabedoria, ou se provido de alguma sabedoria porque
sozinho. Poderia não ser. Inclusive, posso dizer que tinha a maior parte do que
seria necessário para atrair pessoas para o meu lado. Como conhecimento de vida
é algo que não se deleta, eu era incapaz de trazer para dentro da casa que é
minh’alma esse antro de futilidade.
Desta
forma, aumentando colossalmente em escala o que o meu pai me introduziu quando
criança, adquiri o gosto por colecionar figuras articuladas. Mas não pense que
se trata algo sobre esbanjar, de forma alguma. Eles são meus amigos, talvez dos
mais companheiros. Isso porque a minha arrogância me impede de aceitar a troca
que só um ser provido de espírito poderia prover. E como muitos são
razoavelmente frágeis, não deixaria que fossem sufocados em caixas de papelão e
transportadas por pessoas que – e não poderia ser diferente – o fazem inúmeras
vezes por dia, já mecanicamente. Pouco a pouco os levava, e já aproveitava para
instalar as prateleiras e fazer pré-faxinas na casa. Pouco a pouco pegava
intimidade com aquele espaço que também viria a ser meu amigo, apesar da
relação agridoce de um lar com os momentos bons e ruins da vida (e jamais
entenda bons como felizes).
O espaço
que me foi emprestado pela família vagou porque o último inquilino não apenas
passou alguns meses sem pagar o aluguel, como passou os únicos poucos em que
ali residiu sem pagar algum. Do
contexto em que me foi oferecida essa oportunidade, também foi comentado que
das outras sub-casas também havia mais duas a vagar. Tratava-se de uma família
de estrangeiros, de algum país vizinho, que alugou as duas primeiras casas. A
primeira era alugada pela mãe, e a segunda por sua filha. Na prática, porém, em
torno de dez pessoas ali viviam; pois há diferença entre o que é dito e aquilo
que se pratica. O inquilino anterior daquela que tornar-se-ia minha casa,
porém, saiu na base dos berros e ameaças, ao passo que a família das duas
primeiras teria seu desligamento completamente realizado pela imobiliária.
Como
acredito que seja de se imaginar, os berros e ameaças tiveram 200% a mais de
eficácia. Se a imobiliária não fosse proprietária de uma incompetência estupenda,
arriscaria dizer que a animosidade não oficial seria apenas 100% mais
eficiente. Assim, contava-se, em teoria, um mês de permanência mais ou menos a
partir da data em que mudar-me-ia. Na prática, no entanto, convivi com os
supracitados por três meses – que mais me pareceram um ano.
A
matriarca, cujo nome ocultarei, deixou-me dúvidas. Ou era uma pessoa de
qualidades esperadas para um ser civilizado, ou sabia atuar bem. Resumidamente
posso permitir-me dizer que o restante da família e convidados eram
mal-encarados, mal-educados, e passavam a impressão de banditismo – até mesmo
as crianças com mais de oito anos.
Até aí,
tudo bem. Um pouco de farinha aos vizinhos. Posso conviver com isso por um
tempo. Comecei a emputecer-me quando notei que já havia passado praticamente
uma semana em que não havia um dia em que não chegasse – em alto e bom tom – o som
de má qualidade que eles nomeavam como música. Comecei a deixar a televisão
ligada com mais frequência, mesmo que não desejasse assistir à nenhuma obra
audiovisual, em dado momento. Permito-me aqui perder-me momentaneamente do
assunto principal, para salientar que a única utilidade que a televisão exerce
para mim é a das obras. Notícias audiovisuais nada trazem de bom, a não ser a
alienação, obsessão, e a doce arrogância da sensação de que está bem informado.
Se tudo o que você precisasse saber sobre o mundo contemporâneo se resumisse a
um acidente de carro ou assalto nos bairros circunvizinhos, ou mesmo entrevistas
com pessoas que mal sabem proferir dizeres em ordem racional; o mundo seria
mais fácil. As notícias que me interessarem podem ser lidas através de um
tijolo inteligente, sob meu manuseio e minha escolha.
Quando
estava muito enjoado da TV a esmo, ligava o barulhento ventilador de meu
quarto, que preenchia os meus ouvidos com o som de hélices; muito mais doces do
que o que outros chamavam de música. Perceba que vizinhos – mais do que usuários
– traficantes de farinha e cuja insignificância os impediam de apreciar o
silêncio já constituíam problema suficiente; mas ainda me permitiam existir com
algum regozijo. Comecei a conceber a magnitude do problema quando acordei
assustado em dada madrugada, com outro vizinho meu (este a que me afeiçoei), da
casa ao lado da minha, batendo à minha porta. Bastou que me aproximasse dela,
antes de abri-la, para entender que, mais importantes do que os gritos do
vizinho bom para a minha pessoa, eram os gritos do irmão que tentava esfaquear
a irmã, na segunda casa. Naquela hora eu me deparei com algo cotidiano, mas que
não sempre é tão explícito: escolha. Interferir diretamente, enquanto o colega
chamava a polícia? Chamar a polícia e esperar? Não fazer nada, e deixar a
seleção natural agir? Não, este segundo, neste
caso, não me representava.
Respirei.
Iria para lá. Provavelmente seria esfaqueado. Mas iria para lá. Quando me
aproximei, notei que a porta da mulher estava trancada, e ele tentava arrombá-la,
enquanto ela a segurava com o seu próprio peso, do outro lado. Então, sirenes
foram ouvidas: os vizinhos do prédio ao lado foram mais rápidos.
Agora,
eram nove. E minha apreensão ganhou novo escopo.
A vida
seguiu da mesma maneira por dias, semanas; talvez mais um mês. Eu continuava me
afastando cada vez mais daqueles que um dia chamei de amigos. Cada vez mais
racionalizava o flerte com o sexo oposto. Cada vez mais abria a tela do tijolo
por puro vício, e não pelo desejo de entrar em contato com alguém. Quando via
alguma mensagem de uma pessoa que eu escolhi tratar como indesejada, meu
coração parecia querer arrombar o meu peito como o irmão com a porta da irmã.
A tensão
entre eu e os vizinhos indesejados tornou-se explícita, e sempre que eu entrava
ou saía da vila e passava por eles, era palpável no ar o desprezo bidirecional.
Eles tinham alguma incapacidade motora de fechar as portas, pois chovesse ou fizesse
sol, na paz universal ou em meio a uma horda de demônios; eles mantinham-nas
abertas, como para que eu e os outros víssemos sempre suas caras feias.
Preciso
dizer, ainda nesse intervalo a que me refiro, fui racionalizando cada vez com
maior assertividade as reações que tomavam conta de mim, diante do cinza que
permeia as relações humanas. E nada podia fazer com tais racionalizações.
Apenas tomar nota e deixar que tomassem conta de mim. Um planeta que é um
mísero ponto no cosmos. Uma cidade que é um mísero ponto no planeta. E eu, um
ponto na cidade, no bairro, em minha própria casa. Posso morrer feliz ou com o
maior dos sofrimentos; o universo não notará.
Ficou
marcado que os vizinhos indesejados partiriam rumo a outro lugar para
infectarem na sexta-feira. E na segunda, já tendo conhecimento disso – pois sou
neto –, aproximei-me da primeira casa para oferecer ajuda no que precisassem,
ao fim da tarde. Sobretudo à matriarca, por quem eu ainda conseguia sentir
algum respeito, apesar da constante dúvida em relação à sua casca. Como as
portas mantinham-se tão abertas quanto as fezes mantêm-se escuras, e eles vivam
mais fora do que dentro; não tive escolha, a não ser deparar-me com o que
estava lá. Havia portas em dupla nos corredores, que não pertenciam às casas
menores, mas à grande casa que é a vila. Elas levam ao telhado, e há sempre ao
lado de cada outra, que serve como despensa conjunta para tranqueiras. Havia
três duplas de portas em toda a grande casa, e a primeira estava entre as duas
casas de indesejados.
E ali eu
vi um dos irmãos da irmã da segunda casa (mas não o esfaqueador, que estava
preso), filho da matriarca, prender o próprio (neto desta) na despensa. E era
sabido que, ainda mais em um verão como aquele, havia dezenas – sem hipérbole –
de baratas, ali. Fiquei tão sem reação, que simplesmente voltei para a minha
casa e tranquei a porta do lado de fora. Partir para fora da vila e permaneci
na sua, sem emoção. Sentia-me quase um robô, e não me referencio à robótica
mais recente. Apatia e falta de expressão tomaram conta de mim, como um vírus
paralisa o mundo em tempos de pandemia. Não foi preciso muito tempo de
paralisia para escurecer. Quando decidi entrar, para esquivar-me de qualquer assalto
– pois nem mesmo os melhores bairros esquivam-se disso em um país que ouso
chamar de minha terra natal –, voltei à porta que fazia do garoto um
prisioneiro. A porta não levava ao teto, de forma que este permanecia visível
de fora. Estava escuro e não havia lâmpada naquele corredor. Ao ligar a luz do
tijolo mais inteligente do 90% da população do bairro, vi que havia pelo menos
uma dúzia de baratas apenas no teto visível. Algumas, claro, saíam de lá e
ficavam mais ao meu alcance. Não havia medo da minha parte; nem ousaria tê-lo,
por pura compaixão com aquele garoto, que não gritava, não chorava; nem mesmo
se mexia.
Na semana
seguinte, quando aquela família já havia desocupado, decidi pegar veneno em
aerossol e matar aquela horda de demônios em miniatura. Apenas umas cinco
voaram. No dia seguinte, como ninguém varreu a cena do crime, decidi contar.
Setenta baratas mortas. Mesmo a
posteriori ainda senti ânsia em nome do próprio garoto. O que isso faz com
a mente de uma criança? Esse é o destino dele? Tornar-se, no mínimo, como o
pai? É possível escapar de micro experiências como essas ao longo do cotidiano,
e ainda escapar da história?
Como a
matriarca ainda não havia entregue a chave, ainda naquela manhã, enquanto eu
varria; ela apareceu para pegar umas plantas que havia deixado do lado de fora.
Olhando das baratas para a mulher, não consegui deixar a afetação de lado e fui
conversar com ela. Pedi licença, e introduzi o assunto. O que eu intencionei
que durasse alguns minutos durou cerca de duas horas de conversa. Finalmente
decifrei a mulher. Havia, sim, falsidade nela. Não parecia mais ser tão
desconexa do restante da família que ela mesma fundou (talvez com algum pai
ausente para os filhos dela, de início). No entanto, o que eu notava era alguma falsidade, de forma que notei uma
troca suficientemente sincera por aqueles mais de cem minutos. O que me afetou
é que talvez tenha sido sincera demais. Segundo ela, houve um motivo para
aquele castigo tão aparentemente exagerado. Aparentemente, não era.
Poupá-los-ei de esboçar, aqui, o ocorrido. O que permito-me dizer é que,
naquele dia, mais uma parte de humanidade foi embora e nunca mais voltou.
Qualquer chance de retomar amizades ou fazer novas, ou de dar oportunidade ao
romance, ou de tratar bonecos como bonecos; partiu. E sobre o garoto tornar-se
como o pai passou, então, a constituir a divagação do ovo e da galinha. Que
fique claro, tudo isto por um acontecimento que presenciei e que me chocou, que
está muito distante dos mais traumáticos na Terra.
Como
estava dizendo, tenho medo deste mundo. As pessoas cotidianamente realizam
descomunal esforço para enquadrar na gravura apenas do que dá esperança. E,
quando decidem enquadrar também a tristeza; ainda é aquela que pode ser
revertida em aprendizado e poesia. Há hiperbólico esforço pela miopia e
desfoque ao olhar para o mundo em que vivemos. Se eu fosse mais arrogante,
arriscaria dizer universo. Como não o sou, digo apenas sobre o recorte que
ultrapassa um tanto a minha experiência empírica – sem, contudo, negá-la.
Histórias são tão importantes quanto qualquer glóbulo que passeia por nossos
vasos. Há utilidade nelas. Utilidade na beleza que podem carregar consigo, pois
trazem esperança. E é pelas histórias pelas quais você escolhe ter contato, assim como pelo
uso que faz do tijolo, e da TV, do ócio e do trabalho, de cada mínimo esboço de
pensamento; que é decidido se viverá uma longa vida do ponto A ao B, do A ao Z,
ou de volta ao A.
Por Lucas Giesteira
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