Os Celtas na obra de Cervantes
Como dito
no artigo anterior, os romanos anexaram a península como província após as
Guerras Púnicas, em 197 a.C. A tragédia renascentista, escrita por Miguel de
Cervantes, tem muitos nomes (El cerco de
Numancia, La Numancia, Comedia del
cerco de Numancia ou Tragedia de
Numancia) e trata de um episódio das Guerras Celtíberas.
A história
que hoje conhecemos deriva de dois manuscritos da época: um da Biblioteca
Nacional da Espanha e uma cópia do século XVII, do códice Sancho Rayon. Este
segundo manuscrito foi transcrito em 1784, com uma ortografia mais atualizada.
É
considerada uma as melhores tragédias espanholas do Renascimento, escrita por
volta de 1585, mas que permaneceu inédita até o século XVIII. Além da qualidade
da obra, é preciso observar que poucas tragédias de qualidade foram escritas na
Espanha no período.
Trata-se
de uma obra dividida em quatro atos, e com diálogo constituído em maior parte
de oitavas, mas também de tercetos e de quadras.
A
característica de tragédia se dá pela fatalidade a que estão condenados os
numantinos. Numância foi uma cidade celtibérica, a última a resistir à invasão
romana na Península Ibérica. Era habitada por um povo celtibérico, os arévacos,
e foi destruída em 13 a.C. A resistência da cidade foi tão longeva que esta se
tornou um símbolo de luta contra os romanos. Os numantinos resistiram por
incríveis vinte anos, mas a sua queda se deu após um cerco de onze meses. O
cerco foi feito pelas tropas do general Cipião Emiliano, e tinha como objetivo
desesperar os arévacos aos poucos – o que deu certo.
Na obra,
dois embaixadores numantinos tentam firmar uma paz com Cipião, que a recusa,
desejando a conquista da cidade ou a morte. Acredito que não seria inútil abrir
espaço para acrescentar que a ideia de diplomacia da época não era a mesma que
se desenvolveu na Era Moderna; como frisa Foucault, em uma de suas aulas no
curso ministrado por ele no Collège de France.
O aspecto
mítico está presente na obra, tanto de modo fictício quanto em relação à crença
dos personagens (como não deveria deixar de ser, já que há o lado romano, com
herança dos deuses gregos; e o lado celtibérico, com herança dos deuses
celtas). Um exemplo disso está no primeiro ato da tragédia, quando Cipião
repreende os seus soldados por estarem cedendo aos prazeres de Vênus e Baco
(inclusive, na obra, o prazer dos romanos contrasta com o amor verdadeiro dos
numantinos). Outro exemplo está na presença de um espírito do mal em um ritual,
no segundo ato. Na mesma cena um homem morto é ressuscitado (necromancia). Esse
já é o aspecto mítico de forma fictícia.
Outra
questão importante na obra é a presença importante das mulheres no desfecho. Os
homens numantinos decidiram enfrentar os romanos no campo de batalha; mas foram
impedidos por elas, que decidiram que o suicídio em massa seria a melhor
solução para o povo da cidade, de modo que nenhum deles se tornasse escravo dos
romanos. Antes do suicídio a população queimou todos os seus bens valiosos,
para que não fossem tomados pelos romanos. Em seguida, jogaram-se às chamas.
Essa decisão final possui todo um aspecto de patriotismo e sacrifício.
Apesar da
destruição da cidade e de seu povo, afirma-se que os numantinos triunfaram
sobre os romanos. Obviamente eles perderam, mas igualmente os romanos, por
conquistarem um território sem bens valiosos e sem população. Em lugar de
simplesmente sofrerem a derrota, os numantinos perderam para poder retribuir
aos inimigos. Ao fim da tragédia fala-se da Espanha como grande potência, que
aumentou através das cinzas da Numância.
Esse
acontecimento resultou em um patriotismo espanhol que, apesar de esquecido com
o tempo, foi relembrado com as guerras napoleônicas. Numância não deu nome
apenas à obra de Cervantes, mas também à primeira fragata encouraçada da Armada
Espanhola, a várias ruas, e até a uma sociedade liberal secreta, no meio do
contexto absolutista (CARDONA, Gabriel).
Não se
trata, portanto, de apenas um fato histórico, mas sim de um que tece grande
influência na identidade de uma nação, séculos mais tarde. A obra de Cervantes
é um exemplo vivo disso, e é preciso reconsiderar a sua divulgação, através de
novas edições.
REFERÊNCIAS
MARRAST, Robert. Introducción a la ed. De El cerco de Numancia. Madrid, Cátedra, 1999, 4ª ed.. Pp. 11-36.
WHITBY, William M.. The Sacrifice Theme
in Cervantes’ Numancia. Hispania, Volume 45, 1962. Pp. 205-210.
Por Lucas Giesteira
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