A contribuição celta para a língua portuguesa
“Temos ouvido falar de demônios íncubos e súcubos e do perigo das
relações sexuais com eles, mas nunca descobrimos nas histórias da Antiguidade
herdeiros ou crianças que terminaram sua vida felizes e prósperas como este
Alnoth, que dá toda sua herança ao Cristo para sua cura e passa o resto dos
dias a seu serviço como peregrino.” – Walter Map, em De Nugis Curialium
Ao lermos
o trecho da obra De Nugis Curialium,
citado acima, claramente notamos o seu aspecto religioso ou, mais
especificamente, o seu aspecto cristão. Contudo, o conto cujo trecho faz parte
apresenta uma grande influência dos mitos celtas. Trata-se de um conto latino
com fundo céltico. Os demônios de que o trecho fala são as fadas e criaturas
feéricas dos mitos celtas, acolhidas não só em De Nugis Curialium, mas em outras obras da literatura medieval,
como Otia Imperialia, de Gervais de
Tilbury; e Roman de Mélusine, de Jean de Arras. O que há em comum entre esses
escritores? Walter Map e Gervais nasceram no território da Grã-Bretanha,
enquanto Jean nasceu no território atualmente conhecido como França. Aí reside
a questão: os mitos folclóricos envolvendo fadas célticas e criaturas feéricas
podem ser encontrados em toda a Irlanda, Grã-Bretanha, França e vastas regiões
da Alemanha e da Europa Central (Morás, 1999).
Ao
pensamento comum não é nada estranho que os celtas tenham habitado esses vastos
territórios e exercido influência em suas culturas regionais; mas para alguns,
senão muitos, parece incomum pensar que os celtas exerceram forte influência na
Península Ibérica, sobretudo em Portugal. O objetivo deste texto é mostrar a
contribuição celta para a cultura portuguesa, no caso, para o idioma (afixos e topônimos).
EXPANSÃO,
FIXAÇÃO E DOMINAÇÃO
Segundo
José Manuel Freire é difícil anteceder a existência de elementos célticos
anteriores aos séculos V-VII a.C., em relação à expansão linguística nos
territórios ibéricos. Contudo, há uma certeza de que havia a presença celta na
área indo-europeia peninsular entre 1100 a.C. e 900 a.C. (meados do período
Hallstatt A e do Hallstatt B).
A expansão
celta se deu em um quadro de forte crescimento econômico, acompanhado de
pequenas guerras. Através da imposição entre diferentes etnias em uma
diversidade de regiões, deu-se a expansão; em função de necessidades
econômicas, guerreiras e demográficas, com destaque para as duas primeiras. Já
em relação à terceira necessidade, fica claro que a instalação progressiva de
diferentes povos celtas deu-se em acompanhamento com a expansão demográfica,
entre os anos 3000 a.C. e 2000 a.C. – e, posteriormente, na região ibérica,
como já citado. Vale lembrar que a expansão não diz respeito apenas aos celtas,
mas também a outros povos indo-europeus¹.
Ao
alcançarem e se fixarem na Península Ibérica, havia de fato um protótipo de
ideia de sedentarização, de um estabelecimento efetivo no território
apropriado, apesar das dificuldades de partilha da terra (Freire, 1999).
Esses
povos celtas que alcançaram o território hoje conhecido como Portugal
fixaram-se, sobretudo, nas regiões norte e central do território, mas também ao
sul. É importante ressaltar que são delimitações artificiais, mas que se dão em
face de cursos fluviais. A região norte situa-se entre o rio Douro e o rio
Minho, a região sul entre a Orla Atlântica e o Tejo, e o centro entre este e o
Douro.
Ao longo
de sua expansão territorial, os celtas depararam-se com indígenas
indo-europeus, indígenas do centro europeu, e Atlântico. Mais especificamente
ao longo de sua estadia na península, os celtas tiveram um duradouro e
importante contato com aborígenes da região. Devido a essa longa relação
territorial, houve casos de união e de imposição das etnicidades de caráter
centro-europeu com as culturas autóctones, o que consistiu em um processo de
aculturação na região.
Com o
passar dos séculos, os celtas mesclaram-se com os nativos da região, dando
origem às línguas celtibérica e lusitano-galaica – a primeira na parte oriental
e a segunda na ocidental. Devido à amplitude territorial, pode-se notar uma
diferenciação entre as duas línguas. O lusitano-galaico (ou galaico-lusitano,
ou ainda galego-lusitano) apresentava o uso da letra /P/ inicial, enquanto no
celtibérico não havia o seu uso.
É
importantíssimo ressaltar que as línguas celtas conhecidas não usavam o /P/
inicial. Contudo, estas apresentaram um percurso evolutivo em sua quase
totalidade desconhecido. Há uma possível evidência de um /P/ foneticamente
leve, junto de um /h/ [/P(h)/], tratando-se de uma forma arcaica da língua
celta (Walter, 1994). Isso demonstra que o lusitano-galaico é menos evoluído,
mais arcaico, do que o celtibérico.
No século
III a.C. os cartagineses, que haviam formado pontos comerciais na Península,
pretendiam apoderar-se do território, o que forçou os celtiberos a recorrer aos
romanos. Por esta razão, no mesmo século os romanos invadiram a Península
Ibérica, dando origem às Guerras Púnicas.
Após o fim
da guerra os romanos anexaram o território como província, em 197 a.C. Houve,
de certa forma, uma facilidade para a posse territorial, uma vez que a
variedade étnica fazia da península um território muito desunido. Desta forma,
os celtiberos terminaram adotando não só a língua, mas os costumes romanos. Era
o fim de uma era.
TOPONÍMIA
E AFIXOS CELTAS
A toponímia
é uma das maiores provas das expansões não só dos celtas, mas de outros povos
indo-europeus. Como já dito anteriormente, os celtas fixaram-se sobretudo na
região norte e na central do território português. Isso pode ser constatado
através de diversos topônimos da região.
Alguns
exemplos de topônimos celtas do norte/centro e os respectivos nomes atuais (estes
entre parêntesis):
Aritium
Vetus (Abrantes), Arábriga > Alenquer (Alenquer), Caliabriga (Castelo
Calabre em Vila Nova de Foz Côa), Conimbriga (Conimbriga), Civitas Aravorum
< Aravi (Marialva), Lamecum > Lamego (Lamego), Langobriga/Lancobriga
(Fiães), ilha de Londobris (Berlengas), Moron (Montalvão), Montobriga (zona de
Castelo de Vide).
Alguns
exemplos de topônimos celtas do sul e os respectivos nomes atuais (entre
parêntesis):
Ilha de
Armona (Ilha de Armona), Caetobriga (Setúbal), Evion (Alcácer do Sal), Évora
< Ébora (Évora), Terena (Terena).
Outra grande
influência dos celtas foi em relação aos afixos, elementos que se juntam a
radicais para formar novas palavras.
Prefixos celtas tradicionais:
Ard-, Abr-, Av-, And-, Arg-, Bret-/Brit-,
Brig-, Cad-, Cal-, Camb-, Cant-, Carn-, Cat-, Cor-, Mag-, Min-, Mog-, Mor-,
Nemet-, Pen(n)-, Seg-, Tam-, Ux-.
Sufixos
celtas tradicionais:
-abr,
-aval, -brit, -briga, -bonna, -cor, -drag, -drog, -dun, -gal, -megna, -rand,
-xide/-chede.
Desta
forma, apesar de uma desceltização crescente na língua desde meados do século
III a.C., os seus traços não se extinguiram completamente, como pode-se notar
ao observarmos que alguns nomes de lugares (e rios) mantêm os seus nomes celtas
originais até os dias de hoje. Da mesma maneira, podemos reconhecer muitos
afixos presentes em palavras do nosso cotidiano.
Se a
cultura celta é maciça em países como Irlanda, Inglaterra, França e Alemanha;
em Portugal é muito menos presente, mas não pode-se dizer que foi completamente
extinguida. Apesar de a influência celta não penetrar a literatura portuguesa,
por outro lado podemos notar a influência celta (ou melhor, celtibérica) em uma
obra de Cervantes, escritor essencial da literatura espanhola.
¹ Conjunto de povos
da Europa e da Ásia que falam as chamadas línguas indo-europeias, como os dialetos
Centum e Satem, precedentes de várias línguas, como o proto-itálico, o
proto-grego, o proto-germânico e o próprio proto-celta. A maioria das línguas indianas
e iranianas também pertence à mesma família das línguas indo-europeias. As
únicas europeias não originadas do indo-europeu são o lapão, o finlandês, o
estônio e o húngaro.
REFERÊNCIAS
FREIRE, José. A Toponímia Céltica e
os vestígios de cultura material da Proto-História de Portugal. Revista de
Guimarães, Volume Especial I. Guimarães, 1999. Pp. 265-257.
ASSIS, Maria Cristina de. História
da Língua Portuguesa. Linguagens – Usos e Reflexões, Volume 8, 2011. Pp.
113-118.
MORÁS, Antônio P. V.. Das
representações míticas à cultura clerical: as Fadas da Literatura Medieval.
Revista Brasileira de História, v. 19, n. 38, 1999. Pp. 229-252.
Por Lucas Giesteira
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