Conto: Uma última oração a Metuunt Timoribus




A lua estava tão bonita, que me distraí por um momento de meus pensamentos. Longryn quebrou essa imersão, pois retornava com umas galinhas mortas e um balde com água. Seus passos pesavam sobre a lamaceira que se formou. Havia chovido muito, mais do que as costumeiras chuvas de verão. Era realmente alguma forma de instabilidade; como se o mundo nos chacoalhasse, pedindo para pararmos. Hemos de parar, mas ainda é preciso um pouco mais de caos. Peço mentalmente desculpas à nossa mãe colossal, e volto os olhos para o meu companheiro.

- Onde arranjou um balde?

Ele olhou para mim com um misto de deboche e impaciência, como se fosse uma pergunta estúpida e abobalhada.

- Ué, roubei.

- Não me venha com suas poucas palavras. De onde roubou esta m...

- Há um sitio por aqui. Sobre as galinhas você não questiona, mas fica me enchendo sobre um balde.

- Ok, ok. COMO roubou um balde?

- Sou cego, não retardado. Consigo tatear até algumas galinhas.

- Você já viu pessoa tentando alcançar galinhas? Já assistiu àquele filme do boxeador?

- Aí é com vocês, midgardianos.

- Hm, verdade. Talvez você consiga por ser quase do tamanho delas.

- Sim, seu degenerado. Vou preparar o fogo.

Fogo. Sim. Houve fogo.

Quando recuperei Gungnir entre as carnes presas nas presas da serprente, senti. Simplesmente senti, como se a bala conversasse comigo, como se sussurrasse em meus ouvidos para que a fera não ouvisse; como que para nem mesmo o meu amigo pudesse escutar. Mas ela dizia, sei que sim. Dizia que era possível mudar a sua forma, usá-la como fosse mais pertinente para mim. Então, como se fosse um velho detentor do anel de luz verde, usei a imaginação para algo absurdamente pertinente. Então, uma bomba, Gungnir explodiu. É claro que eu tinha medo de morrer; mais claro ainda que Longryn tinha medo. Mas em meio à turbulência sonora houve mais delicados sussurros. Mal houve tempo de alimentar o medo. Tudo o que pude fazer foi acompanhar o fogo.

Então, entendi. Aquelas chamas não nos tocavam, eram para ela. Jörmundandr.

Se o fogo não estava sendo invasivo, a água foi. Pronto, então achei que iríamos morrer, mesmo.

Acordei, acordei, acordei. Terra. Terra firme. Onde está o meu amigo? Oh, graças a... Sim, sim. Graças. Mas onde está a serpente? Não estava lá, mas acho que tudo bem.

- Longryn! Longryn!

Ele não me responde direito, mas está bem, vivo.

As horas passam, e confiamos na ilusão da segurança. Não sei bem onde estamos, mas palpito que ainda seja território tupiniquim.

Então, como se meus olhos estivessem em modo de câmera lenta, velho o colossal sair das águas. Mas não como antes, a cobrinha estava debilitada. Volto meus olhos para Gungnir, mas penso que não é justo. Como nas sagas, é Thor quem deve pôr fim à fera. E hoje, Longryn é Thor.

Ao olhar para ele, não precisei nada dizer, o pensamento era compartilhado por nós. Então, o vi levantar-se decididamente, martelo em punho. Trovão e relâmpagos encheram olhos e alma, e quase fui às lágrimas quando vi meu amigo esmagar a cabeça daquele bicho filho da puta.

A lua estava tão bonita. Me distrai.

Levanto.

Saio da cabana.

Por trás da montanha o sol ilumina tudo o que de bom a minha vista alcança. E o amanhã ainda não parece importar, até que as nuvens me façam lembrar do que não posso postergar. Isso titubeia por todos os cantos de minha às vezes excessivamente geométrica mente.

É hora do ritual.

Metuunt Timoribus é uma criatura simples, que jamais almejaria rituais pedantes e que puxassem suas bolas escamosas. Simples como Cristo, subtraindo-se o fato de que em seu mundo ainda era presente, ainda era visto. Ora, isso haveria de mudar de nosso lado, não? O bebê Jesus está de volta, mais famoso do que aquele filhote de árvore daqueles filmes divertidos. Mas esta guerra que se pretende travar pode mais uma vez cortar os planos desse irmão que eu admiro tanto. É sério, peço até desculpas pelas piadas. Peço desculpas por tudo. Pelas igrejas, por tudo mesmo. Não é hora de chorar agora, Markus. Hoje, sinto um amor por ele, que nunca conheci. Alguém que desprezei tanto. Ele não pode ser encontrado por ninguém que lhe queira mal. Se o matarem, tudo bem. Irá desencarnar e encerrar esta guerra. Mas aqueles que lhe querem mal não vão tirar a vida do bebê, vão criá-lo e educá-lo para que nunca se torne aquilo que deveria.

Sabe, seria mais fácil se todos fossem inocentes. Depende do que você entende por inocência, é claro. Falta de inocência pode ser imaginar todo mundo pelado com seis anos de idade; ou simplesmente não acreditar na bondade da vida. Refiro-me à segunda opção.

Ok, preciso seguir com a história. Vocês repararam que a narração tem se levado menos a sério ao longo dos capítulos? É o que a vida faz com a gente. Ao menos para os que estão dispostos a aguentar o tranco.

O acesso a Salar Vindur – mais especificamente à localização de Metuunt Timoribus – se dá, portanto, através de uma oração. Parece justo, não? Ajoelhei na lama, sem me importar com vaidade. Baixei a cabeça, em sinal de humildade, ou tentativa de. Foi uma cena bonita; gostaria que começasse a chover de novo exatamente nesse momento, teria sido perfeito. Enfim, lá estava eu, ajoelhado, bonito. Mas orei com seriedade, e com minhas próprias palavras.

“Irmão e senhor, Metuunt Timoribus.

Após todos esses anos, desde que a sua existência me foi apresentada, venho a ti para pedir ajuda. Sei que fiz coisas horríveis, e que fui parabenizado por isso. Da dor que causei, vieram aplausos. Do ônus, o bônus. Sei que ainda vai acontecer, que ainda vou arcar com isso. Mas não agora. Preciso me fortalecer, e preciso de você. Por favor, leve-me até você; e depois leve-me a outro lugar. Que assim seja.”

Prontamente fui inundado por uma sensação mais insuportável do que qualquer dor física: senti que o mundo inteiro era energia, menos eu. Todos eram libertos pela luz; e eu, preso num corpo físico pelo resto da rebaixada eternidade. Então, começamos a pegar fogo, e esse ardia um pouco. Viramos cinzas e deixamos de existir. Mas, em outro mundo, renascemos também das cinzas. Nasci num deserto. Era vasto: de um lado, quilômetros à vista, sem nada ocupando a paisagem árida. Do outro, uma criatura.

- Existe oração para chegar aqui, e não existe para ir direto ao Paraíso? – Debochou um ser muito pequeno e insignificante, que ouso chamar de amigo.

- Ia explicar que o Paraíso é um lugar muito mais sagrado do que Salar Vindur; mas te dou uns pontos pela piada rápida.

- Como é aqui?

- Vazio. Quase vazio. Muito quente, também.

- Meu corpo nasceu para suportar o calor, mas a vida que passei no gelo me enferrujou.

A criatura do outro lado era gigantesca. Em cima, uma casca, semelhante à de um besouro. Não possuía pernas, braços, patas. A sua locomoção era singular. Primeiramente, movia-se pelas longuíssimas cartilagens que lembravam tentáculos; não fosse o fato de serem cobertos de curtos pelos escuros. Em segundo lugar, para auxiliar, usava as duas presas – muito parecidas com as de um tigre dentes-de-sabre, mas de tamanho mais parecido às de um mamute – para arrastar todo o peso de seu corpo adiante. Por fim, apenas quando muito precisasse, a casca abria-se em duas asas nem um pouco membranosas, mas rígidas. Eram incapazes de fazê-lo voar, pois a sua utilidade era a mesma dos dentes. Pela dor em abri-las, eram apenas usadas em último caso. Então, era basicamente uma criatura grotesca, que vivia arrastando-se pelo deserto, sem quaisquer formas de graciosidade. Assim como o meu amigo, não tinha o dom da visão, mas porque realmente não possuía olhos. Não havia nariz, apenas narinas muito sutis. Eu diria que era como o resultado de uma orgia entre mamutes, polvos, besouros, smilodons e aranhas.

- Estou sentindo um bicho se aproximando. Devo me curvar, ou algo parecido?

- Não precisa, até porque esse não é Metuunt Timoribus. Aliás, lá vem ele, voando atrás de você.

- O quê? NÃO!

Longryn foi agarrado pelas patas de um dragão, como um peixe tomado por uma águia. Não parava de gritar, parecia uma cabra azeda. Quando o divino se encheu, pousou-o de volta ao solo fervente.

- Vejo que já se apresentou ao meu colega.

A resposta veio telepaticamente.

Quem é o pobre coitado que precisa aturar o velho Svartanaglar?

- Este é Longryn, ex-aliado de Lúcifer e Odin.

- Ahn. Olá, alteza.

Você, eu entendo usar-se de cerimoniosas palavras. Nunca me viu, e está com medo de mim. Com razão, é claro. Mas você, velho amigo... Que oração foi aquela? Até parece que normalmente falaria comigo assim.

- Foi sincera, apesar disso. Isso eu garanto. Também estou com medo. Não de você, mas estou.

Eu sei. Sabe qual é a pior parte? Deveria, mesmo.

- Encorajador.

Sincero.

Podemos caminhar? Não há nada como uma boa caminhada em tardes como esta, com aqueles de quem gostamos.

- Claro. Mas não acho que esse medo me puxe para baixo. Sinto que, de alguma forma que não seria possível no passado, ele me motiva.

Através da sua oração, eu poderia simplesmente levá-los direto para onde desejam. Ainda assim, quis me ver. Espero que seja por saudade, porque a necessidade não existe.

Nada respondi.

Você veio até mim com dúvidas das quais já sabe as respostas. Com inseguranças que já está solucionando antes mesmo de cogitar falar comigo. Vejo dor em você, meu amigo, mas daquelas que é preciso abraçar. Então, sofra. Mas depois pare. Sinta tudo o que tem que sentir, até esgotar as suas energias. Quando a tempestade passar, estará tudo destruído; mas o sol nascerá, e não haverá mais desastre semelhante por duradouros anos. A poeira irá baixar, e isso lhe digo com máxima propriedade.

- Sofrer é o que fiz durante a minha vida mortal inteira. Mas não sabia pelo que estava sofrendo. Não parecia haver motivo.

Agora há motivo, e está sabendo lidar melhor do que antes. A dor é bem-vinda, mas sei que não precisa ouvir isso de mim. Você quer que eu diga o que já sabe, como forma de aprovação. Mas não a darei. Quero que seja aquele que almeja ser sem precisar do meu empurrão, simplesmente porque não precisa de um. Não é a própria vida empurrão o suficiente, para aqueles que sabem interpretar? Sabedoria é saber como se portar diante da correnteza.

Longryn ouvia com atenção, sem nenhuma exaltação. Absorvia as palavras como se fossem dirigidas a ele. E por que não? Poderiam ser dirigidas a qualquer um. Já eu mais sentia as palavras em meu peito do que me esforçava para racionalmente interpretá-las. Como ele disse, eu sabia que já sabia. Não insisti em obter mais respostas, mas também não queria ir embora.

- Não quero mais voltar a ser o velho Markus em vida carnal, mas também não quero mais ser a velha entidade Svartanaglar.

Ótimo, até porque Lúcifer já tomou o nome para si.

- Você é um deus? – Questionou o anão, quase infantilmente.

Deus é apenas uma designação a seres detentores de grande poder e influência. A palavra só dá poder ao real se assim quisermos. Se desejarmos ser metafóricos, os grandes empresários da Terra são deuses mais influentes do que o velho Zeus.

- Eu prefiro Odin.

Então será doloroso quando tiver que se deparar com a decisão que está tomando.

- O que é aquele bicho? – Questionei, para quebrar aquela conversa.

Aquela é Olvner Contemplativa, a minha contraparte da ausência de luz. Enquanto o universo não encontrar a solução para o desafio proposto pelo único Deus cujo título faz sentido, deverá haver um delicado equilíbrio entre luz e trevas. Essa dualidade não é novidade para vocês, mas saibam que um dia deixará de existir. Quando todos estiverem prontos. Mas não tenham raiva dos irmãos que ainda rastejam; já estiveram em seu lugar.

- Mas o que ela faz de ruim? – Longryn perguntou exatamente o que eu queria, mas não tinha coragem.

Nada. Não diretamente. Apenas é detentora da sólida energia ruim, da vibração mais baixa. Eu poderia incentivá-los a aproximar-se e entenderem o que estou dizendo, mas o contato com essa vibração não é o que precisam agora. Não que seja algo novo para quem teve contato direto com Lúcifer. Ao aproximarem-se de Metatron, notarão que a sua energia está quase no meio do caminho entre a minha e a dela.

Realmente uma criatura asquerosa, bem antagônica em relação a Metuunt Timoribus. Um dragão de sete metros de altura, com uma cabeça de dois metros de comprimento e escamas de tom lilás que beiravam ao diamante; em impenetrabilidade e translucidez. Os olhos verdes eram lindos, mas o que realmente fazia a diferença era o olhar, que dava a sensação de que estava tudo bem – e o que não estivesse, iria de ficar. A sua forma de falar e suas palavras adequavam-se aos do interlocutor, mas nenhuma palavra ou tom de voz batiam de frente com aquele olhar e sensação. É realmente uma energia muito leve, como se mal precisasse de asas para pairar no ar. Algo me diz que nunca mais tornarei a refletir os seus olhos.

Agora, antes de partirem, o auxílio que não me pediu. Lembra-se de quando te contei a respeito do grande Ragga Malgnus?

- Com certeza.

No dia em que ele foi salvo por Lúcifer, este matou em definitivo o deus do Medo. Aqui mesmo, em Salar Vindur.

Não soube exatamente o que responder em um primeiro momento. Todos sabiam sobre o desaparecimento de Phobos, mas ninguém conseguiu traçar uma causa ou paradeiro. Não havia nenhuma conexão clara entre o assassinato e um possível suspeito.

- Alguém mais sabe disso?

O pai dele suspeita, mas não fará nada até que seja confirmado. Vocês podem ser a confirmação, se desejarem ter no deus da Guerra um aliado.

- Eu não posso ir para o Grande Salão agora.

Não precisa ser agora. As oportunidades vêm até nós, por vezes. Mas não se esqueça de que ainda tem aliados.

- Miguel?

Miguel, Iva, Noskard.

O elfo estava muito debilitado, e os dois precisariam cuidar dele. A menos que o deixem para morrer.

- O anjo é mesmo confiável?

Se não fosse, não teria feito tudo o que fez. Confie.

- Eu vou, prometo.

Não precisa prometer nada a mim, Svartanaglar. Também não é preciso prometer a si mesmo. Só faça, só seja, só brilhe. Eu estarei contigo, sentindo o mesmo amor de sempre. Amor por vocês todos. E ajude o seu amigo.

- Eu é quem vou ajudar esse troll! – Como eu adoro esse anão.

- Svartanaglar?

Como todos, você teve inúmeros nomes, um para cada vida terrena. Mas foi como Svartanaglar que se libertou desse ciclo – antes do tempo, preciso frisar. Assuma esse nome, até que não mais precise.

- Como vou saber?

Não cabe a você saber ou decidir certas coisas.

Acordei. O desgraçado podia ao menos ter se despedido de mim direito. Talvez ele não goste de despedidas. Talvez ele saiba que eu não gosto. É, acho isso mais provável. Estou deitado sobre areia úmida. Uma praia muito, muito bonita. Ah, sim, acho que chegamos ao Paraíso.


Lucas Giesteira

Comentários

Postagens mais visitadas