Conto: Devaneios


Houve épocas em que senti que era a minha melhor versão. E, contra a própria lei do progresso, constantemente decaía; incapaz de sorver a glória insidiosa, viciado em um eu que parecia um ídolo distante. Essa é a história da minha mente e de meus sentimentos, de tudo o que há de mais inerente em mim; que independe de minhas ações externas e pensamentos alheios.

Já fui verdadeiramente muito menos. Se houvesse a possibilidade de literalmente todos os seres pensantes me conhecer, e se fosse feita uma enquete, todos diriam que eu era muito menos. Ainda assim, havia uma força verdadeiramente gloriosa dentro de mim, que me fazia sentir-me luminoso como as estrelas, poderoso como as marés. Afinal, como posso afirmar sobre a verdade mais verdadeira? Sendo eu aquele que mais deveria me amar, o que sinto sobre mim não conta mais do que o diz o resto do universo? Ou há uma verdade inerente em tudo?

Assim, o vento me leva, e sou levado a acreditar que era menos. Não menos espantosa, contudo, é a sensação que enchia meu peito fortalecia o meu olhar. Sim, o olhar que me fazia ganhar o mundo – ao menos o meu mundo. Eu era tão vazio, sabe? Tudo o que parecia mais importante para mim soa hoje como comédia de má qualidade. Como – eu me pergunto – poderia me sentir tão mais?

Voltemos um pouco. Existem dois eus. O da vida terrena convencional, e o renascido pelo suicídio. Ah, não, não se preocupe; estou bem. Eu estava em casa, entende? Os meus pais tiveram problemas em minha criação, quando se tratava de dar compreensão e afeto; mas deram tudo o que se podia exigir em relação a todo o resto. Eu vivia em uma ótima casa, localizada em um ótimo bairro. Ora, como se isso fosse tão crucial quando se mora em um país de primeiríssimo mundo. O meu quarto era belo, o meu mundo. É claro que houve brigas de agressão mútua, quando começaram a ver toda aquela porcaria satanista colada na parede. Antes disso, quando comecei a ter problemas em deixar de comer para me manter extremamente magro. Já soquei o meu pai, depois que ele derrubou o meu armário com preciosidades da cena local do Black Metal norueguês. Isso sem falar no meu VHS de Guerra nas Estrelas autografado por Anthony Daniels. Sim, conforme venho a contar, noto que são mais intrigas do que o meu imaginário mantém registrado em meu dia a dia. Talvez aí resida a maior parte do perdão da espécie humana. Talvez seja só uma questão de memória. Se bem que... Estou me lembrando de tudo isso, e não sinto raiva. Daria um abraço em meu pai, se pudesse. Grande homem. Talvez não aos olhos do mundo, mas por que deveria me importar? É a minha verdade, não?

A minha mãe, por outro lado... É complicado demais, sabe? Houve momentos em que me sentia mais ligado a ela do que ao meu pai. Aquela velha história da ligação materna, enquanto a relação com o progenitor é sempre mais distante. Enfim, já senti ligações absurdamente fortes com ela. No plural, pois iam e vinham, sempre separadas por oceanos de brigas ou mesmo de ausência completa de relação. Acho que esta é a pior parte; sempre preferi ver a minha mãe tendo um longo momento para brigar comigo do que o seu silêncio por semanas, talvez meses. Mas quando erámos amigos, parecia a maior e mais satisfatória amizade do mundo. Infelizmente, o saldo nunca saiu do negativo; e sempre a culpei por me trazer ao mundo. Isso é vaidade. Uma pessoa incapaz de se relacionar saudavelmente com um filho não deveria intencionalmente tê-lo. E o meu pai, bem, queria manter o casamento e a relação com o filho. Isso automaticamente implica, mesmo que sem querer, em escolher o primeiro. Ó, vaidade dos mortais.

Durante toda essa época mortal a minha existência era ordinária. Nunca houve ali a insidiosidade da glória que devoraria o meu caos. Foi depois que, para eterno trauma de meus queridos pais, tirei a minha vida; que abracei novas sensações de autoconfiança. Ali estava eu, em terreno novo, vivendo o sonho de não ser. Não se pode dizer que seja verdade, não é mesmo? Afinal, aqui estou eu. Mas veja bem, parti do mundo dos mortais ainda muito jovem; o que parecia impossível em um país com excelente qualidade de vida. Cometi suicídio e estava bem para contar a minha história a quem quisesse ouvi-la – ou simplesmente poderia vagar com minha mente pelo cosmo. E, pela primeira vez, senti-me hipócrita. Estava gostando de existir. Podia não ser a vida carnal que sempre conheci, mas era vida. E então me envergonhei de lembrar de Deus, que escreve certo por linhas tortas.

Ainda assim, era vaidade. Talvez não a mesma que acometeu meus pais, assim como bilhões de indivíduos. Talvez exatamente a mesmíssima. Mas sim, vaidade. E aparentemente não necessariamente exclusiva dos mortais. Lúcifer estava certo, não fazia realmente sentido. Toda aquela empolgação – advinda de uma poderosa energia mental capaz de sustentar sucessivos Big Bangs – estava me matando, em sentido muito mais doloroso do que à morte do corpo. Era como heroína, não só pelo prazer, mas pelo sofrível déficit de tudo o que há de bom que sucedia. E é evidente que todo o tempo de imenso e desesperador vazio estava para o prazer como o bolo está para a cereja central.

De niilista a suicida; e então, hedonista. Não que esse nominalismo todo seja importante. Ou talvez seja. Nomes podem ser concedidos por outrem, ou podemos criar novas identidades e portá-las como um cachorro orgulhoso de sua nova coleira. Não importa a origem de nossos nomes, são o cartão de visita que impregna a identidade de cada um. Nunca tive qualquer problema com o meu nome de nascença, mas aquele que decidi criar... era algo mais. Parecia coerente com a minha queda rumo à desesperança. O tempo só provou que passei a ser integralmente Svartanaglar.

Svartanaglar, o nome que Lúcifer roubou de mim.

Perdão, creio que me deixei levar pela raiva. Sim, hedonista. Vazio, vaidoso. Não, agora sou muito mais. Mas onde está a força que fazia de meu olhar o cativeiro de quem ousasse retribui-lo? Acredito que, colocando as coisas desta forma, não há como não entender a contínua raiva em relação a Deus. Simplesmente não é justo, meu amigo. Ora, se ignorância é uma bênção, o que nos levaria a passar a vida tentando nos tornar sábios? O pior de tudo é que naturalmente nos levamos a esse lado. É como uma força motriz, suponho, que nos leva inerentemente em direção à auto melhoria, mesmo que nos custe a própria felicidade. Talvez seja porque a mesma inerência é responsável pelo curto tempo de vida da ignorância. Até quando esta é uma bênção? Até que surja uma situação que faça da sabedoria a dádiva.

Enfim, onde estava? Ah, sim. Minha mente vagava pelo cosmo. Houve tempos em que o meu olhar era capaz de convidar seres a comprarem ideias nas quais jamais pensariam. Antes, passava os meus incontáveis dias existindo e me regozijando. Hoje, passo os dias lutando pela mesma causa que me trouxe à vida eterna, e falhando. Mas juro pela careca serena de meu velho pai, que vencerei. Talvez mude de lado pelo caminho. O que posso fazer? Sou apenas um ser novato em um universo ancião; posso me dar o luxo de mudar de opinião com agressiva brusquidão. Hoje sou quase como um anjo, adotado pelo rei de todos os renegados, mas esta progressiva consciência me faz sentir-me um pouco como o velho mortal que fui. Demorou todo este tempo para me aproximar do homem que deveria ser em carne e osso?

"Como eu queria ter a mente de hoje com a aparência da minha juventude". Já ouvi isso tamanho número de vezes, que logo no princípio já havia perdido a conta. Anjos possuem o luxo de aprimorarem-se por toda a eternidade e não enxergarem sequer um sinal de velhice. Mas acreditem, por tudo o que enxergam de errado, nem a eternidade corrige certas atitudes viciosas. Este é o erro daquele que roubou o meu nome, o meu pai das falsas verdades.

Sabe, estou prestes a acordar, mas agora há pouco, ainda inconsciente, tive o meu sonho mais humano em décadas. Lá estava eu, numa vilazinha oitocentista. Dos oceanos surge hiperbolicamente a criatura ancestral conhecida como Cthulhu. Em ângulos quase cinematográficos, a fera amedronta o expectador (que na verdade sou eu, mas não o eu em miniatura, que protagoniza o sonho); e a população local corre ao meu redor, quando me convenço a fazer o mesmo. Como em todo bom sonho, sem razão alguma pairam anacronicamente helicópteros para resgatar um pequeno número de indivíduos. O cenário parecia uma mistura do abstrato com uma renderização desses videogames de última geração com o qual vocês se viciam. Consegui entrar em um deles, que, ao alcançar os céus; permitiu que visualizasse melhor a proporção do monstro em relação ao cenário no qual me encontrava inicialmente. Aos poucos tudo foi se enevoando, e só consigo me lembrar de que fui parar na civilização, como Annabelle Darrow após ser resgatada da Ilha da Caveira. E, como Kong, Cthulhu viria.

Acordei, mas notei que ainda se tratava de um sonho. E lá vamos nós, com sonhos dentro de sonhos. Não quero entrar nessa discussão, mas lá estava eu, sonhando que estava sonhando com monstros. Quando acordei do primeiro sonho, estava na cama, em um quarto que parecia ser o de uma garota satânica, deitada ao meu lado, completamente nua. Nesse segundo sonho, eu parecia agridoce. Feliz pela companhia, mas triste por alguma perda anterior. Talvez sejam as velhas questões da mocidade. O meu eu imortal transcendeu tanto o velho garoto norueguês que tinha problemas com os pais... Esses sonhos tão mundanos, tão idioticamente despropositados, trouxeram-me de volta aos meus tempos de cereja. A verdadeira cereja, antes de me enganar com o hedonismo de um recém encantado adotado pelo segundo pai.

Pois bem, chegou a hora de acordar. A última lembrança que possuo é a de um pato, um belíssimo anseriforme que me enfeitiçou por terras tupiniquins. Um elfo, um revólver, e...

A Serpente de Midgard.

Acordo assustado. Ao demorar alguns instantes para recuperar a memória, dou tempo para que uma inesperada companhia tente compreender quem sou. Tateio o asqueroso tecido bucal da fera e entendo que houve algo com patos.

- Quem está aí?!

- Longryn? Longryn! Noskard disse que estava morto!

- Svarta. Ainda não, mas estou cego.

- Como aconteceu?

- Veneno de cobra ancestral, suponho.

- Noskard também estava...

- Sim. Parece uma sina. Quem sabe você não é o próximo?

Fito os seus olhos e vejo alguém que sempre precisou se apegar à corrente para continuar, dia após dia, continuar. A corrente permanece, mas desta vez é mais difícil prever para onde o levará. Eu, por outro lado, pareço um tanto mais seguro de mim. E determinado, sim. Talvez possa ajudar a correnteza a guia-lo.

- Noskard estava em desespero. Isso me preocupou mais do que os ferimentos. – Compartilhei.

- E desde quando essas belezuras radiantes demonstram algum tipo de vigor?

- Há senso de humor aí, afinal. Acho que gosto mais do anão cego. Aliás, nunca imaginei que seria tão bem recebido por um anão.

- Heh.

- Sabe, sempre me perguntei sobre a relação entre os anões humanos e a raça mitológica de vocês, elfos negros. Tirando o excesso de barba, o temperamento...

- Basta, Unhas Negras.

- Oh.

Agora o anão estava pensativo, parecia um pouco mais com ele mesmo. E então, tudo o que podia fazer era aguardar.

- Desde quando se importa com Noskard? Ou com qualquer um de nós?

Não, não respondi prontamente. Era uma boa pergunta, do tipo necessário. Aquela indagação que não sabíamos possuir até que outro passe pela linha de chegada e a faça primeiro. Afinal, qual a ordem natural da empatia?

- Eu não sei, meu amigo. Sinceramente. Mas sei que desejo que todos saiamos bem deste perrengue.

- Perrengue?

- Estamos em águas brasileiras.

- Hm. Todos quem?

- Nós três e mais dois amigos. Uma moça e um rapaz com as costas esquisitas.

- Charadas? Sério? Ah, vamos lá. Você foi sequestrado. É claro que foi por algum anjo. Qual?

- Miguel. A mulher é descendente direta de... Svartanaglar, suponho. Iva.

- Uh. E pretende que nós três nos aliemos com...? – Ironizou o anão do deboche.

- Nós mesmos.

Olhei atentamente para a diminuta figura orgulhosa e notei a arma de cabo igualmente diminuto ao seu lado. A herança dos Aesir é, na realidade, pertencente aos elfos negros que habitavam os montanhosos espaços enfornalhados de Svartalfheim. Também notei facilmente o apego que tinha com o objeto.

- Por que você roubou Mjölnir?

- Poderia dizer foi para poder me defender. Mas a verdade é que eu sempre quis ter esse martelo.
Encarei o anão com seriedade; e então nós dois começamos a rir, cúmplices de um sentimento que compartilhávamos.

- Eu também sempre quis sentir o poder de Mjölnir nas veias. Mas não precisa se preocupar, não vou tentar roubá-lo. Só preciso encontrar Gungnir no meio desta boca podre. Hoje, você será Thor; e eu, Odin.

Demorou cerca de duas horas par que conseguisse encontrar e extrair a bala dourada da carne do animal. É claro que Jörmungandr sentiu, e por muito pouco não fomos colocados para fora, soltos no oceano aberto, destinados a morrer no vazio. Mas lá estávamos, munidos apenas da lança condensada em bala e do espírito ativo, que soprava em nossos ouvidos como o vento soprava as caravelas do expansionismo português.

- Como ele fez isso? Transformar em bala.

- Não sei bem, mas não creio que foi pela sua metalurgia. Magia antiga dos anjos, talvez. Bem... recuperei o que era meu.

- Não exatamente seu.

- Odin me deu.

- Enquanto lutasse ao lado dele.

- Lutar, hmpf. Este perrengue precisa ser resolvido sem guerra. De novo não.

- Engraçado um descendente de vikings dizer isso. E, por favor, pare de dizer “perrengue”.

- Cresci na versão mais pacífica de meu país, amigo. Os maiores problemas eram pessoas como eu. Queima de igrejas, sabe? Nunca vivi a guerra.

Parei por um momento, sem ser interrompido.

- Já mentalizei muito que eu era um grande guerreiro, de grandes feitos, e que os meus pais poderiam me ver. Sentir orgulho de mim, com certeza. Hoje, vejo que isso já passou. Eles não vão me ver; não mais.

Apesar de cego, era como se Longryn pudesse me enxergar, olhar não fisicamente para mim, mas para minha alma. Besteira.

- Mas vocês vão me ver. E eu os verei. Estamos mais vivos do que nunca; quem diria? Qualquer batalha parece menor.

- Enfim. – O interesse passou longe – O que faremos?

- Precisamos levar a serpente ao Paraíso.

- Qual delas?

- Certamente nenhuma que tenha mente. Não esta, não ele.

Existe um mundo apoiado em outro plano existencial, que atravessa este como a luz. De tempos em tempos as realidades se cruzam em certo ponto, e aqueles que – ao acaso ou propositalmente – encontrarem-se ali, cruzarão para o reino deles. Ouvi dizer que Lúcifer salvou um governante histórico do local. Bem, existe outra maneira de atravessar a fronteira. Meu mestre me ensinou no mesmo dia em que contou a história de Ragga Malgnus. Uma magia estudada e desenvolvida ao longo de nove anos terrestres, iniciada pelo próprio imperador desesperado; e concluída pelo anjo. Contei tudo ao anão, que se esforçou para ligar os pontos e imaginar o que precisava ser preenchido. Não foi o bastante para evitar elevada dose de confusão mental. Como a maioria dos entendimentos, era necessário um pouco de passagem de tempo. Esta também me permitiu entender melhor o sonho anterior, ou parte dele.

- Por que está me contando sobre esse lugar?

- O meu mestre demorou milênios para conseguir retornar ao Paraíso. Eu mesmo nunca estive lá. Nenhum habitante do Umbral esteve. Nem mesmo a doce Yarin. Mas o meu mestre descobriu há muito um ser com conhecimento e poder para atravessar até lá.

- O que o impediu de atravessar antes, então?

- Você sabe a resposta. Medo. Quantas vezes não basta alguns passos andados ou poucas palavras ditas e escritas; e adiamos indefinidamente, por puro conforto? Relações de pais e filhos podem ser... difíceis.

- Quem pode nos ajudar a atravessar?


- Metuunt Timoribus.

Lucas Giesteira

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