Conto: O mais antigo dos medos e a escolha de Ragga Malgnus
Senhor, eu te louvo porque me fazes vencer o medo,
Principalmente o medo de recuar diante das injustiças.
Eu confio em ti, que me protege e fortalece minha confiança.
Vivendo através de seu amor, de quem terei medo?
A ti ofereço hoje minha vida como louvor.
Amém.
Oração do Salmo 27
Não existe hoje, ontem ou amanhã, humano acima e senhor do medo. As criaturas “à semelhança de Deus” são os seres que têm medo. Não que animais não o experimentem, mas é um medo uno. Estes temem serem devorados. O nosso constantemente muda, filho da nossa inteligência imaginativa e traiçoeira; renova-se. Estamos fadados ao conhecimento e, assim, fadados a antecipar a nossa morte desde a juventude dos pensamentos. Animais possuem instintos, fogem face ao perigo iminente; mas é uma reação, nada mais. Nós usamos amuletos, apegamo-nos a crenças que nem sequer necessariamente explicam dúvidas preexistentes. Não se criam mitos para explicar a natureza. Nascem em prol do preenchimento do vazio e como ombro amigo para o sopro gelado que vem desde a reta final, perpassando todo o tempo até chegar ao nosso presente. Contemplativos, pedimos colo, como uma criança apavorada. No fim, somos crianças apavoradas; esforçadas em nos provar dignos de um orgulho que não faz jus à nossa quebradiça casca.
Remédio é o medo corre pelas veias. Em dose elevada, pode ser fatal. Sem nenhuma dose, idem. Não teríamos chegado até aqui sem medo. Ainda assim, este perdurou por séculos como motivo de vergonha dos homens. O silêncio é tagarela, muito tem a dizer. Pode servir como uma prece fiel, desprezo, consideração, consentimento, negação. Ora, negamos por muito tempo o medo na história da humanidade. Silêncio este que demorou para ser, pouco a pouco, quebrado. Qualquer tipo de história, oral ou escrita, mirou nos protagonistas heróicos e corajosos. A história sempre odiou aquele casal. Homens e mulheres, crianças e idosos. Todos odiaram o casal que permanece de mãos dadas. O medo é cônjuge da vergonha, e esta é fiel.
O que a maioria não gosta de admitir é que o único obstáculo ao divórcio é a hipocrisia. Chegou a hora de marido e mulher divorciarem-se. Medo e covardia não são idênticos, e não os confundamos. O herói é aquele que teme, e sufoca a temeridade com bravura. De resto, são apenas heróis criados a posteriori, frutos de uma agenda política global que sempre visou solidificar as origens dos povos e nações em homens que assemelham-se a deuses. E nem nisto há verdade, pois estes são pais, mães, filhos e filhas do medo.
A pluralidade que confunde as gerações pós-modernas não mostrava-se em eras anteriores. Nobreza e plebe. Deus e o Diabo. Cristãos e pagãos. Heróis e covardes. E entenda-se nobres como heróis, pois medrosos são os humildes, e apenas eles. É claro que nobreza e poder eram justificados através de tempos longínquos, de heranças divinas e/ou de antepassados lendários. Mas sabemos que isto é apenas a porta de entrada; e é preciso sustentar por longo tempo o poder, através de um revestimento de atitudes esperadas, difundidas em forma de honra pela iconografia e pelas letras.
O sábio cospe na entidade chamada honra. Qual a sua serventia? A honra nos alimenta, nos garante salvação? Impede o advento de doenças e tristezas? O que é a honra, senão uma palavra bonita? Honoris, honneur, honor, ehre. Palavras, todas enfeitadas, nenhuma serventia.
Qual seria o medo mais antigo da humanidade? As pessoas boas gostam do dia, enquanto as ruins deleitam-se com a noite. É na escuridão que saem os pecaminosos, tais como ladrões, assassinos, estupradores, adúlteros. Também é quando dão as caras seres sobrenaturais e maléficos. Toda noite é uma provação, mas até então sempre dá lugar ao crepúsculo; e assim sucessivamente. Mas, e se o sol não voltasse?
É possível persistir e resistir às horas obscuras. É possível manter-se seguro muralha e porta adentro; tanto de lobisomens e vampiros quanto de duendes. Pode-se ser atormentado através dos sonhos, devido às Quauquemaires; mas há fim. Caso o sol apague, estamos fadados a morrer.
Se há entidades encarregadas de poderes e funções concentradas, alimentando-se das trivialidades da vida, o deus do Medo nunca passa fome. E aqueles meses de inverno foram de fartura. A figura encapuzada passava a cavalo pela aldeia, cujo número de suicídio havia aumentado nos últimos cinco meses. Em poucos dias o sofrimento se encerraria, pois o sol voltaria a aparecer naquela região. Os habitantes daquela aldeia diziam que o sol estava doente, e mal conseguia dissipar a névoa. O vulto regozijava-se.
O seu destino encontrava-se a poucos dias dali, e decidiu pernoitar por lá. Aquele inverno foi inegavelmente mais longo do que de costume, e as brumas incomumente permaneciam. Ao abrir a porta, o visitante trouxe consigo a brisa gelada às peles da família que administrava a estalagem. O dono era um senhor de meia idade, que vivia com sua mulher, um rapaz recém tornado homem, e uma menina que ainda não havia chegado na mocidade.
- Frio impiedoso, não?
O senhor assentiu, encarando o visitante com um meio sorriso, desconfiado. Este fitou cada morador da estalagem, contando dois hóspedes que lá tomavam sopa de ervilha.
- Seremos todos carregados pelos braços pálidos do inverno. - Soltou o rapaz.
- Bonito, muito bonito. Há beleza nisso? Nesse vento que arranha minha face, e congela meu espírito?
- O espírito é o último a congelar, senhor. Disto, tenho certeza. - Respondeu o senhor Lohan, com sagacidade.
- Ah, mas quando ela for, será para bem longe, imagino. Enlouquecida e enfraquecida. Lá, será aquecida?
Conforme o medo intensificava-se, o viajante sentia-se mais vigoroso, poderoso como o próprio frio que consumia o local. Era como se o medo pudesse ser medido.
- Hm, talvez haja alguma beleza nisso. - Lohan riu com vontade, e um pouco forçadamente. - E quem é você?
- Eu sou... Phoela. Vim da Irlanda, visitar o rei.
- Que nome estranho. - Soltou a menina.
- Mirela! - Com muita rapidez, a mãe a repreendeu.
- É um nome incomum, mesmo, até para o meu país. - Confortou. - Bem, não desejo incomodá-los, apenas gostaria de pagar a minha estadia. Passarei apenas esta noite.
E naquela noite as lágrimas congeladas cobriram as montanhas próximas. A nevasca matou cervos, lobos, pássaros e pessoas. Quem estava aquecido pela lareira, salvar-se-ia. Mas Phobos estava lá, e sentia fome. No dia seguinte, culpariam a Quauquemaire, que encheu as mentes adormecidas de pavor arenoso. Quando o viajante deixou a estalagem, na manhã seguinte, os vizinhos ainda não haviam descoberto os seis cadáveres; o cheiro viria com o tempo.
Quando todos os problemas partiram, dormi.
E sonhei, como sonhei.
Todos os sonhos que não tive até então vieram em uma única noite.
Engraçados, macabros, alentadores; de todos os tipos.
Ao acordar, sabia que tudo estava em relativa paz.
Quando todos os problemas partiram, dormi.
E sonhei, como sonhei.
Todos os sonhos que não tive até então vieram em uma única noite.
Engraçados, macabros, alentadores; de todos os tipos.
Ao acordar, sabia que tudo estava em relativa paz.
Como todos, Phobos alimentava-se do que estava disponível, mas não deixaria passar a chance de provar iguarias. Reis certamente eram pratos finos, e há tempos o deus do Medo precisava de força.
A cada vinte anos, no solstício de inverno, o plano existencial em que encontrava-se a cidade de Salar Vindur atingia a mesma vibração que a de nosso planeta. Assim, se fosse encontrado o ponto exato da fina linha de interseção, era possível encontrar a entrada da cidade imperial. Aquele ponto entre as duas décadas, no entanto, coincidia com as horas finais do imperador Ragga Malgnus.
Além de ser quase impossível encontrar o ponto de colisão vibracional das duas realidades durante o imperioso inverno local, não se entrava na cidade de Salar Vindur com facilidade. Phobos deparou-se logo de início com uma porta falsa, que visava controlar viajantes que ingressassem no local após a despedida do Sol. O deus foi de encontro à porta de ferro que um de dois guardas abria de seu alojamento, a mais de duzentos passos dali. A corrente de ferro puxava, através de um longo caminho cheio de curvas, uma outra peça de ferro. Permitida a passagem do vulto, a porta encontrava-se pronta a fechar-se com brusquidão. O vento do inverno soprava o grito agonizante de desespero, e trazia consigo as lágrimas congeladas daqueles que temem o inevitável. Em dias como aqueles, os poderosos exalavam impotência, e entendiam um pouco melhor o seu lugar nos mundos. Phobos andava rigidamente por uma ponte coberta, que sobrepunha-se a um fosso. Desembocava na humilde praça, na qual deveria identificar-se e declarar a que veio.
- Vim a pedido do imperador. Sou Phobos, um velho amigo.
O primeiro guarda teve de acionar o segundo, para que encaminhasse um mensageiro diretamente aos aposentos de Malgnus. Todo o processo demorou cerca de quarenta minutos. Então, o segundo guarda acionou uma mola que viria a abrir uma barreira de ferro e conduzir uma roda de grande porte a mover a ponte levadiça. Subitamente para e um grande ruído anuncia abre-se uma porta espessa de madeira, reforçada com grandes lâminas também de ferro. Phobos encarou a escuridão que veio em seguida. Caminhou lentamente em direção à sala sem luz em que se viu encerrado. Outra grande porta se abriu, e uma segunda sala possuía luz o suficiente para que enxergasse o vaso de bronze em que deveria depositar o imposto de sua passagem. O segundo guarda, sem ter qualquer contato direto com o visitante, puxou a corrente e recolheu o vaso, somando a quantia depositada. A terceira porta espessa foi aberta, e o vulto viu-se na cidade imperial.
Phobos compreendia que o soberbo uso da metalurgia local visava ocultar a ausência de soldados naqueles tempos. Assim, se não conseguiam expulsar definitivamente o medo para fora da cidade, ao menos poderia diminuir o seu potencial, de forma que conseguissem viver com ele. Quando o senhor do medo penetrou em Salar Vindur, ninguém notou diretamente. Estava no ar, mas de forma tão diluída, que a abstração subjetivizava-o. Não seria por menos: o foco do vulto era apenas a figura que definhava no ponto central da urbe.
Ragga Malgnus cresceu como uma criança excessivamente tímida e insegura, constantemente alvo da maldade dos meninos e das meninas. Quando muito criança, sofria pelo excesso de peso e falta de talento para interagir com os outros. Ao chegar na fronteira da infância com adolescência, exagerou por perder mais peso do que deveria, ficando cadavérico. A falta de talento na interação melhorou, mas permanecia ineficaz. Em vez de usar a raiva para crescer, sem notar escolheu ficar cada vez mais para dentro de seu próprio mundo, incapaz de viver a realidade em sua totalidade. Isso prejudicou por longo período a relação com os pais, que viam a prole definhando em seu próprio caos. As reações paternas não ajudaram na situação, e cada vez mais o rapaz entrava em guerra imaginária com o mundo.
Anos se passaram e a guerra foi diluindo-se lentamente. Cada vez mais o rapaz tornava-se um homem razoavelmente convencional, aos olhos daquela sociedade. O pai se foi, mas as pazes já haviam sido razoavelmente traçadas. Com a mãe não havia grande amizade, mas o conflito também não dava as caras. Todos esperam que grandes figuras nasçam destinadas ou, caso contrário, tornem-se grandes pouco a pouco, de forma coerente e gradual. Mas não há lei nada vida para isso, e Ragga, dois meses após o seu aniversário de vinte e cinco anos, explodiu para o mundo. Entendeu-se como grande líder militar e logo focou em montar o próprio corpo na arte do combate. Aqueles que presenciaram momentos chave em sua ascensão ficavam boquiabertos face aos discursos que saíam naturalmente e sem ensaio, em momentos inesperados. Esses não necessariamente entraram para a história escrita, como os discursos cerimoniosos, mas deram margem para a consolidação do aspecto lendário do imperador Ragga Malgnus, que unificou os territórios de Salar Vindur e Garmnvarden.
Casou-se, mas perdeu a esposa para a traição do corpo, para o que os cidadãos da Terra chamam de câncer. Não quis ter filhos, ao menos não enquanto a esposa ainda vivia bem. Agora, pai de todo um povo, mas sozinho; sentia-se uma vez mais como a criança indefesa de tudo. No fundo a criança nunca o abandonou, mas pela primeira vez em décadas, tornava a ser a própria. E então aquele, que conhecera através dos sonhos fabricados pelo irmão, anunciava a sua chegada e entrava pela porta da frente.
- Está frio, e estou tremendo. Não sei se é de medo ou do vento que faz a janela ranger em meus ouvidos.
- De que adianta isolar a causa, se as duas são reais?
- Não, o sopro quer dizer algo mais. É você, gritando na minha cabeça? Se você é o deus do Medo, onde está a Morte?
- Você é a morte. Esse seu corpo velho e em decomposição é a morte ainda em vida. É tudo o que precisa saber.
Ah, mas havia uma Morte ali, nas sombras. A sua presença não se fazia sentir em meio à arrogância do deusinho; então decidiu dar um passo à frente.
- Primo Lúcifer, há quanto não tenho o desprazer de vê-lo. Há uma Morte aqui, afinal, velho.
Lúcifer penetrou o olhar do outro com o próprio, sem nada dizer. Foi quando caminhou com calma até o senhor acamado, e as palavras foram de doçura e sabedoria:
- Quando há duas entidades disputando em seu leito de morte, a escolha é sua.
- Escolha do quê?
- De quem irá apadrinhar a sua ida.
- Isso faz alguma diferença?
- Sim, toda. A viagem pode ser sofrida ou recatada. Pode passar por paisagens tortuosas; ou de beleza incompreendida, assim como a sua vida. Você pode levar tudo consigo, todas as memórias e aprendizados; ou pode esquecer de tudo e ir de alma vazia a apavorada.
Foi nesse momento em que Phobos sentiu raiva, e o deus do Medo amedrontou-se. O pior inimigo do criminoso é a conscientização que isola-o em posição fetal.
Então, Lúcifer, de volta às sombras, partiu de vez.
Dois seres na mesma sala, um homem e um deus. E, de toda forma, a presença humana era muito mais poderosa. A divindade tinha dúvida, mas o decrépito havia feito uma escolha; é em momentos como esse que homens vencem deuses.
A vastidão de minha minúscula alma treme quando ventos e velas afastam aquela que aparentava ser a intransponível memória de quem fui.
E então sorrio, e tudo se acalenta; pois subitamente compreendo o sentido de tudo isto.
Hoje, o deus do Medo passará fome de caviar.
Lucas Giesteira
Este conto foi categoricamente inspirado nos dois primeiros capítulos de O Medo no Ocidente: 1300-1800, Uma Cidade Sitiada, do historiador Jean Delumeau.
A cada vinte anos, no solstício de inverno, o plano existencial em que encontrava-se a cidade de Salar Vindur atingia a mesma vibração que a de nosso planeta. Assim, se fosse encontrado o ponto exato da fina linha de interseção, era possível encontrar a entrada da cidade imperial. Aquele ponto entre as duas décadas, no entanto, coincidia com as horas finais do imperador Ragga Malgnus.
Além de ser quase impossível encontrar o ponto de colisão vibracional das duas realidades durante o imperioso inverno local, não se entrava na cidade de Salar Vindur com facilidade. Phobos deparou-se logo de início com uma porta falsa, que visava controlar viajantes que ingressassem no local após a despedida do Sol. O deus foi de encontro à porta de ferro que um de dois guardas abria de seu alojamento, a mais de duzentos passos dali. A corrente de ferro puxava, através de um longo caminho cheio de curvas, uma outra peça de ferro. Permitida a passagem do vulto, a porta encontrava-se pronta a fechar-se com brusquidão. O vento do inverno soprava o grito agonizante de desespero, e trazia consigo as lágrimas congeladas daqueles que temem o inevitável. Em dias como aqueles, os poderosos exalavam impotência, e entendiam um pouco melhor o seu lugar nos mundos. Phobos andava rigidamente por uma ponte coberta, que sobrepunha-se a um fosso. Desembocava na humilde praça, na qual deveria identificar-se e declarar a que veio.
- Vim a pedido do imperador. Sou Phobos, um velho amigo.
O primeiro guarda teve de acionar o segundo, para que encaminhasse um mensageiro diretamente aos aposentos de Malgnus. Todo o processo demorou cerca de quarenta minutos. Então, o segundo guarda acionou uma mola que viria a abrir uma barreira de ferro e conduzir uma roda de grande porte a mover a ponte levadiça. Subitamente para e um grande ruído anuncia abre-se uma porta espessa de madeira, reforçada com grandes lâminas também de ferro. Phobos encarou a escuridão que veio em seguida. Caminhou lentamente em direção à sala sem luz em que se viu encerrado. Outra grande porta se abriu, e uma segunda sala possuía luz o suficiente para que enxergasse o vaso de bronze em que deveria depositar o imposto de sua passagem. O segundo guarda, sem ter qualquer contato direto com o visitante, puxou a corrente e recolheu o vaso, somando a quantia depositada. A terceira porta espessa foi aberta, e o vulto viu-se na cidade imperial.
Phobos compreendia que o soberbo uso da metalurgia local visava ocultar a ausência de soldados naqueles tempos. Assim, se não conseguiam expulsar definitivamente o medo para fora da cidade, ao menos poderia diminuir o seu potencial, de forma que conseguissem viver com ele. Quando o senhor do medo penetrou em Salar Vindur, ninguém notou diretamente. Estava no ar, mas de forma tão diluída, que a abstração subjetivizava-o. Não seria por menos: o foco do vulto era apenas a figura que definhava no ponto central da urbe.
Ragga Malgnus cresceu como uma criança excessivamente tímida e insegura, constantemente alvo da maldade dos meninos e das meninas. Quando muito criança, sofria pelo excesso de peso e falta de talento para interagir com os outros. Ao chegar na fronteira da infância com adolescência, exagerou por perder mais peso do que deveria, ficando cadavérico. A falta de talento na interação melhorou, mas permanecia ineficaz. Em vez de usar a raiva para crescer, sem notar escolheu ficar cada vez mais para dentro de seu próprio mundo, incapaz de viver a realidade em sua totalidade. Isso prejudicou por longo período a relação com os pais, que viam a prole definhando em seu próprio caos. As reações paternas não ajudaram na situação, e cada vez mais o rapaz entrava em guerra imaginária com o mundo.
Anos se passaram e a guerra foi diluindo-se lentamente. Cada vez mais o rapaz tornava-se um homem razoavelmente convencional, aos olhos daquela sociedade. O pai se foi, mas as pazes já haviam sido razoavelmente traçadas. Com a mãe não havia grande amizade, mas o conflito também não dava as caras. Todos esperam que grandes figuras nasçam destinadas ou, caso contrário, tornem-se grandes pouco a pouco, de forma coerente e gradual. Mas não há lei nada vida para isso, e Ragga, dois meses após o seu aniversário de vinte e cinco anos, explodiu para o mundo. Entendeu-se como grande líder militar e logo focou em montar o próprio corpo na arte do combate. Aqueles que presenciaram momentos chave em sua ascensão ficavam boquiabertos face aos discursos que saíam naturalmente e sem ensaio, em momentos inesperados. Esses não necessariamente entraram para a história escrita, como os discursos cerimoniosos, mas deram margem para a consolidação do aspecto lendário do imperador Ragga Malgnus, que unificou os territórios de Salar Vindur e Garmnvarden.
Casou-se, mas perdeu a esposa para a traição do corpo, para o que os cidadãos da Terra chamam de câncer. Não quis ter filhos, ao menos não enquanto a esposa ainda vivia bem. Agora, pai de todo um povo, mas sozinho; sentia-se uma vez mais como a criança indefesa de tudo. No fundo a criança nunca o abandonou, mas pela primeira vez em décadas, tornava a ser a própria. E então aquele, que conhecera através dos sonhos fabricados pelo irmão, anunciava a sua chegada e entrava pela porta da frente.
- Está frio, e estou tremendo. Não sei se é de medo ou do vento que faz a janela ranger em meus ouvidos.
- De que adianta isolar a causa, se as duas são reais?
- Não, o sopro quer dizer algo mais. É você, gritando na minha cabeça? Se você é o deus do Medo, onde está a Morte?
- Você é a morte. Esse seu corpo velho e em decomposição é a morte ainda em vida. É tudo o que precisa saber.
Ah, mas havia uma Morte ali, nas sombras. A sua presença não se fazia sentir em meio à arrogância do deusinho; então decidiu dar um passo à frente.
- Primo Lúcifer, há quanto não tenho o desprazer de vê-lo. Há uma Morte aqui, afinal, velho.
Lúcifer penetrou o olhar do outro com o próprio, sem nada dizer. Foi quando caminhou com calma até o senhor acamado, e as palavras foram de doçura e sabedoria:
- Quando há duas entidades disputando em seu leito de morte, a escolha é sua.
- Escolha do quê?
- De quem irá apadrinhar a sua ida.
- Isso faz alguma diferença?
- Sim, toda. A viagem pode ser sofrida ou recatada. Pode passar por paisagens tortuosas; ou de beleza incompreendida, assim como a sua vida. Você pode levar tudo consigo, todas as memórias e aprendizados; ou pode esquecer de tudo e ir de alma vazia a apavorada.
Foi nesse momento em que Phobos sentiu raiva, e o deus do Medo amedrontou-se. O pior inimigo do criminoso é a conscientização que isola-o em posição fetal.
Então, Lúcifer, de volta às sombras, partiu de vez.
Dois seres na mesma sala, um homem e um deus. E, de toda forma, a presença humana era muito mais poderosa. A divindade tinha dúvida, mas o decrépito havia feito uma escolha; é em momentos como esse que homens vencem deuses.
A vastidão de minha minúscula alma treme quando ventos e velas afastam aquela que aparentava ser a intransponível memória de quem fui.
E então sorrio, e tudo se acalenta; pois subitamente compreendo o sentido de tudo isto.
Hoje, o deus do Medo passará fome de caviar.
Lucas Giesteira
Este conto foi categoricamente inspirado nos dois primeiros capítulos de O Medo no Ocidente: 1300-1800, Uma Cidade Sitiada, do historiador Jean Delumeau.
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