Conto: Asas de Anjo Não Se Cortam
A noite concentrava-se no meio da madrugada, e nem isso fazia a temperatura diminuir. Aqueles privilegiados com ar condicionado enganavam o ar da metrópole, mas os demais só podiam jogar-se em frente aos ventiladores que inundavam os milhões de cômodos. No centro da cidade havia muitos prédios abandonados, e em um dos cômodos acordou o corpo que não decidia-se se estava vivo ou morto. E, ao lutar contra a preguiça de abrir os olhos, viu o homem pássaro ao lado de uma garota que conhecia há pouco tempo.
Ela foi a primeira a notar a volta da consciência de Svartanaglar, e cutucou Miguel. O auto-exilado doubrou-se para atender o sequestrado. E não demorou muito para que, com o avançar da consciência, este retomasse a fúria.
- Seu filho da puta! Destruiu minha missão! - Dizia em norueguês, entre tentativas de agressão.
Miguel só podia defender-se ou atacar. Mas o conflito físico destruiria o refúgio dos três. Depois de algumas tentativas, conseguiu segurar os braços do outro, e gritou mais alto, sobrepondo a voz racional aos gritos animalescos que beiravam ao vocal de uma banda de Black Metal.
- Eu precisava cumprir a MINHA missão! Mas o queria vivo. Podemos conversar antes de tentarmos nos matar, e a todos em volta?
Em volta. Svartanaglar pela primeira vez pensou em algo que não fosse o fracasso.
- Onde estamos? - Perguntou em português, para que todos entendessem.
- São Paulo.
O ferido olhou para a garota, buscando confirmação. A mesma veio com um aceno de cabeça.
- Iva. - Cumprimentou-a.
- Svartanaglar.
- O que fazemos neste fim de mundo, com odor cada vez mais forte de poluição? - Tornou a dirigir a palavra a Miguel.
- Cada vez mais forte? Já esteve aqui, rato da Noruega?
O ataque do anjo foi fácil; a cutucada estava na ponta da língua. Dois a zero. Não houve resposta. Ao menos não verbal. Mais um olhar fuzilante foi o que precedeu o levante so sequestrado. Abriu uma fresta da janela, e olhou o Centro Histórico da metrópole brasileira.
- Por que estamos aqui?
- Porque meu irmão está na Bahia, com ele.
Svartanaglar poderia não compreender a frase, devido à sua proposital imprecisão; mas sabia do que o outro falava.
- Então a criança realmente nasceu no fim do mundo. Vivemos em puro luxo, comparado às condições dele.
- Você nem ao menos sabe em que parte do estado ele nasceu, seu imbecil. - Corrigiu Miguel. - Mas seu julgamento ao menos está certo. Jesus nasceu em uma vila bahiana pobretona.
- Qual o nome atual?
- Édipo. - Disse com desgosto, sabendo que qualquer piada em resposta seria justa.
- Alguém lá andou lendo. - E assim o foi. - Esse aí não vai precisar preocupar-se em matar o pai.
- Ah, por favor. - Duas piadas já eram demais. - Podia ser pior.
Os dois riram, já era um grande começo para os dois que quase eliminaram um ao outro. Mas Iva, que, insegura com dois seres não humanos, escolheu fazer silêncio; incomodou-se.
- Vocês dois são muito preconceituosos. Um europeuzinho de merda e um filho do Deus que não fez nada pela gente. Vamos logo salvar essa criança de merda; fazem cinco minutos e já não aguento mais ficar aqui.
- Cinco minutos...? - Começava a questionar um anjo confuso.
- Cinco minutos com os dois! Antes você quase não falava, até gostava.
Miguel sorriu. Entendia a garota. As sociedades daquele tempo começavam a esboçar a trilha para o caminho da igualdade. Ainda estavam muito sensíveis. E ele precisava conversar um pouco agradavelmente com a alma penada racista e xenófoba, para assim acalmar os ânimos. Mas o seu âmago verdadeiramente concordava com a garota. Afinal, foi assim que aquele atualmente recém nascido ensinara.
Não havia perigo iminente para onde iriam. Não era exigida grande estratégia ou planejamento. Na iminência de ataques de quaisquer lados da esboçada nova guerra celestial, Miguel tomaria a frente, e Svartanaglar levaria a garota. Por mais desgostoso que o anjo ficasse com essa possibilidade, não poderia deixar a responsabilidade de defender a todos com o outro. Além disso, ele servia ao pai da garota.
No dia anterior à partida, Iva trançava o cabelo de Svartanaglar. Ao terminar, a ponta da trança batia na altura do olho que tudo vê.
- Obrigado. - Disse com sinceridade. - Se quiser, posso fazer o mesmo no seu. Não o meeesmo, o seu é muito menor. - Piscou para a garota.
A mesma retribuiu o olhar irônico à altura, com um sorriso debochado. Por breve momento os dois olharam nos olhos um do outro e nada precisava ser dito. A situação não precisava ser desarmada com sarcasmo, ninguém estava inseguro com o momento. Na realidade, momentos como aquele eram a única não insegurança que Iva tinha. Já Svartanaglar sentia-se brincando. Mudou de lado na guerra como via uns e outros trocando os óculos espelhados de azul para verde ou laranja, na região. Não diria que mudou diametralmente de lado, pois Miguel e Iva seriam uma força à parte na guerra, defendendo o terceiro e chorão rei. Ainda assim, pendiam mais para o lado de Metatron do que de Lúcifer. Mas estava tudo bem, era divertido sair da zona de conforto. Talvez, se pego por Lúcifer, fosse torturado. Mas existe algo mais Black Metal do que isso?
- E se você cortar o meu cabelo, enquanto me distraio com a trançada?
- Jamais faria isso, filha de Lúcifer. Aquele ali, sim, precisava cortar algo. Algo mais viril do que suas partes baixas, se é que tem.
A poucos metros do flerte, um anjo olhava-se no espelho. Foi difícil acostumar-se com a cabeça livre, e as costas sem serem cobertas pela cortina de cabeleira de milênios a fio. Difícil, mas muito bem-vindo, como qualquer mínima mudança no tédio eterno. Mas as asas o definem, como definem qualquer anjo. E, apesar do auto-banimento, ainda desejava ser um. Talvez o primeiro anjo a libertar-se das amarras da longa duração, mas ainda um anjo. Estava confuso, sentia-se contraditório. Seriam as asas parte das amarras, ou algo que transcende tal classificação?
- Vamos lá, cara. Estamos no século XXI, seja mais desconstruído. Menos é mais!
- Eu não sei, humanos se amarram em uma asa. - “Contrapôs” Iva.
Svartanaglar fez uma feição parecida com a de quem acaba de ouvir alguma história de incesto.
Miguel não virou o rosto em momento algum, acompanhou os dois através do espelho. Pensou um pouco mais. Cortar as asas certamente facilitaria muito o disfarce. E a aparência do norueguês não é exatamente o que chama de comum nas paragens brasileiras.
Pensou.
- Cara, é só uma missão. Vamos ficar todo o tempo sentados no ônibus. Quando chegarmos lá, vai ser indiferente se suas costas estarão volumosas sob o casaco. O único problema é o casaco. Boa sorte.
- Odeio quando você tem razão, filho de Lúcifer.
Svartanaglar olhou com assombro. A cena parou. Os dois do outro lado ficaram estáticos, Iva acompanhando o olhar exagerado.
- É modo de falar, gente. - Corrigiu Miguel, com sinceridade. - Calma, já basta uma cria dele aqui. Eu não aguentaria duas. Apesar de que você se parece muito mais do que ela.
A viagem foi longa. Miguel insistiu em ficar com Iva, enquanto Svartanaglar ficou em um dos bancos à frente dos dois, absorto em seus pensamentos estranhos. Ao descerem do ônibus, demoraram mais algumas horas, alternando entre caronas com dois caminhoneiros e um ônibus.
Pela estrada, viram mães tentando entregar seus filhos aos viajantes. Na realidade, viram todo tipo de vendas, e até mesmo um assalto; mas o que impressionou Iva foi ver mães desistindo de suas crias, por não terem condições de criá-las com dignidade. Mal podiam cuidar de si mesmas, e não foram ensinadas a protegerem-se enquanto se divertem. Por um momento, Iva entendeu o que Miguel e Svartanaglar conversavam, mas logo recobrou a consciência, envergonhada de si mesma.
O pequeno grupo teve de passar pelo olhar curioso de julgativo do habitantes da pequena vila. Certos olhares pareciam mais ameaçadores do que o anjo e o outro jamais haviam trocado entre si. Ao caminharem até metade do caminho, perguntaram. “Onde está o bebê Édipo?”. Os habitantes jamais diriam, mas apontaram para a moradia. Miguel já estava desconfiado, e foi o primeiro a pisar lá dentro.
Mãe chorosa, pai sem saber como apoiar a mãe. Ela botava para fora, ele sentia o mesmo, mas comprimia tudo, achando que aquilo é ser homem. Ao perceberem que não era nenhum vizinho que entrava, a agressividade animalesca de qualquer pessoa com medo dirigiu-se à nova pequena trindade. E, juntando toda a calma e sabedoria que ainda restava, Iva gritou:
- Estamos aqui para ajudar! Viemos aqui por saber que seu filho corre perigo!
Os outros dois tentavam conter o casal endemoniado. Sem sucesso, pois não queriam usar força bruta. Ou, corrigindo, Miguel não queria, e Svartanaglar tinha de obedecer.
A paciência é como um líquido e, como tal, precisa ser contido em espaço bem delimitado, como um recipiente. Conforme vai esvaindo-se, o recipiente é vai esvaziando-se de líquido e enchendo-se de ar. O líquido vai tornar a encher o espaço, mas leva tempo. Muitos acham que conseguem segurar-se até que o recipiente volte ao que era antes, mas não costuma acontecer. E, de copo vazio, Miguel abriu as asas, e as mesmas abriram espaço por seu casaco abafado.
O casal parou. Tão simples. Tão enlouquecedor. Muitas informações em um só dia.
O pavão, de asas ainda abertas, olhou com assustadoramente calma severidade - algo que só os vividos sabem.
- Onde está o seu filho?
Palavras que já haviam saído trêmulas abriram espaço pelas cordas vocais, e mais trêmulas saíram. Um homem de olhos muito laranjas levou o menino.
Os gritos ecoavam pelo Grande Salão, fruto da bebedeira que precedia a cerimônia. E nada chegava aos ouvidos do cego, absorto em pensamentos de arrependimento. Certamente sua vida anterior não era provida de significado, mas o escapismo que percorria suas veias era limpo, desprovido de felicidade ou tristeza. Nisso, via o equilíbrio da vida. Este falhou quando empatizou uma vez mais com Wotan. Agora, não se vê mais apto a deixar a causa que não escolheu, e não há como restaurar a visão perdida. Jamais veria a beleza de Alfheim. Jamais retornaria para casa.
Pequenos deuses gargalhavam, agrediam-se, acasalavam, tramavam. E, enquanto o elfo nada ouvia, Mjölnir escutava tudo. Com o formato semelhante ao de uma âncora, o lendário martelo possuía uma pequeníssima cruz talhada ao centro, quase imperceptível. Mas para o portador aquela cruz aparecia sempre nitidamente, e o machucava. O ego é o calcanhar de Aquiles da maioria dos seres - e nem mesmo o governante dos céus, guia dos ventos e tempestades, dos raios e trovões; poderia escapar dessa sina. O calcanhar de Thor encontrava-se ferido há há mais de um milênio, e sua mente mancava, atingida pela flecha do Cristianismo.
De luva sempre cobrindo a mão, bebia, mas não ria. De longe, Longryn observava a celebridade. Thor não percebia, mas o seu melhor fitava de volta o anão machucado. A sua ferida, no entanto, datava de poucos dias. Thor aprendera a conviver com a dor, mas o anão ainda questionava tudo sobre a sua. Se passaria, quando passaria e, no primeiro caso; se aprenderia, como fizera o Deus do Trovão.
Quando a aliança com o Monarca de Lugar Nenhum foi selada, todos esperavam que o portador da longuíssima barba ruiva encheria-se de renovado vigor e esperança. E, por isso, todos se decepcionaram. O tempo de Thor havia encerrado-se. A pior parte é que ainda havia seguidores em Midgard. Nunca deixaram de existir, e a era da informação reforçou o sentimento restante. Havia seguidores em todas as partes do mundo. Por “seguidor”, considera-se aqueles que pensam no personagem e apreciam o seu conceito. Era o suficiente para dar alguma força a seu pai, mas não a ele. Precisava de sacrifícios, coito, hidromel e batalhas: tudo midgardiano. Deuses não veneram deuses, de forma que o hidromel do Grande Salão não tem o mesmo sabor, assim como o coito com as deusas. Almejava o odor de estrume local, fedor de dias sem banho, doenças, e burrice dos mortais.
Lúcifer veio para preencher o vazio que Thor deixara nos âmagos de cada Aesir. E como os Aesir preenchiam o vazio das demais divindades, Lúcifer surgiu para animar a todos. Hlidskialf não mais existia, e os dias que seguiram o ocorrido foram de pesar. Mas o tempo urge, e o pesar precisa ser engolido com hidromel. Chegada era a hora. Lúcifer seria coroado como líder dos Filhos da Fé Antiga, liga de todas as divindades exiladas por Elohim.
Muitos com dor de cabeça, outros com sono, e outros ainda com ânsia. Este era o público presente na nomeação, com exceção de uns poucos. Ares não havia bebido, apenas dormiu com Gersemi. Durante a nomeação, observava atentamente os detalhes.
Floreios preenchiam o sabor da cerimônia, como não poderia deixar de ser. Quando Wotan deu voz ao protagonista da ocasião, foi para que aceitasse a honraria. E Lúcifer o fez, mas à sua própria maneira. O discurso encerrou-se como um soco no estômago de Noskard e Longryn, mas se o terceiro estivesse no local, seria uma facada.
- Desde o início dos tempos até o presente momento, vivi como Lúcifer. Fui Lúcifer nos áureos tempos idos como anjo reconhecido pelo Pai. Desde então, tenho sido Lúcifer como o monstro pelo qual as pessoas temem antes de dormir. Tenho sido Lúcifer como anjo caído e filho abandonado. Sou Lúcifer como Rei do Inferno. Mas hoje, e nos dias que se seguirão, liderarei nossa estirpe como Svartanaglar, o Reerguido.
Quando Longryn fugiu com Noskard, Ares viu. Mas nada fez, pois concordava. Teria feito o mesmo em seu lugar, se não tivesse nada a perder. O elfo e o anão não tornaram-se amigos do mortal suicida, mas o conheceram. E, por mais que se esforce para o contrário, determinada dose de empatia com quem conhecemos só mostra-se anulável com esforço. Não era o caso dos dois, não havia necessidade de ir contra o mortal. E assim enxergaram loucura em Lúcifer, mais neste ato do que em seus próprios “assassinatos altruístas”. Não sabiam ao certo para onde iriam, apenas iam. Mas se tivessem chance, contariam para Svartanaglar, o Suicida; que tornara-se Markus, o Usurpado.
Ares não concordava com o fato de terem fugido. Aqueles dois eram irrelevantes para a grandessíssima maioria dos presentes; pouco importava se partiriam ou permaneceriam. Ares concordava com o que Longryn fez, após pingar algumas gotas no hidromel de Thor e derrubá-lo. O anão partia com a luva, e a luva partia com o martelo. O deus caiu em tamanho descrédito que, ao notarem sua ausência, todos só conseguiam pensar que permanecia apagado de bebida, com alguém ao lado.
Ao centro do Salão, o novo Svartanaglar sorria.
Lucas Giesteira
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