Conto: Svartanaglar



Tomava posição presente a primeira metade da década de noventa. Já eram meados de junho e o Hemisfério Norte passava pelo início do verão. O sol dava as boas-vindas enquanto os seus raios perpassavam os dezoito graus, que faziam os habitantes da Noruega saírem de suas casas para aproveitar o dia.

Em Oslo, Markus Jørnson compunha e escrevia, enquanto os seus pais saíam rumo a Trondheim. De bigode e barba de bode finos e loiros, não conseguia crescer uma barba, e isso muito o irritava. Longos cabelos - originalmente loiros, tingidos de preto - cobriam suas costas, também cobertas com camisetas pretas, contendo inscrições que assustavam os vizinhos. Os seus pais não sabiam mais o que fazer. A mãe já havia desistido do garoto muito antes de sua mínima formação como indivíduo. Não havia motivos aparentes para uma relação nascer tão inerentemente danificada. O pai se dava bem com o filho, enquanto este ainda era uma criança divertida e inocente, detentora de um amor incondicional e aumentado/comprado por brincadeiras e presentes que ganhava. Tudo começou a ir por água abaixo quando o filho entrou na fase rebelde, composta por alguns afluentes. Era temporário, pensava o pai. Um dia tornariam a ser amigos. Um dia teria orgulho de Vidar. Mas o garoto já havia superado a adolescência há alguns anos. Black Metal, era o que chamavam. O imaculado subgênero criou raízes que sairiam da Noruega, mas que sempre remeteriam a ela.

A porta da casa encontrava-se destrancada, mas o contrário não seria um impeditivo. Era 22 de junho de 1991, o dia em que Lúcifer conheceu Svartanaglar.

Nome sueco, que remetia à sua ascendência materna, traduzido literalmente como “unhas negras”. Anos atrás havia adquirido o costume de pintar suas unhas com dedicação, retocando-as semanalmente, e fazendo-as cuidadosamente. Posteriormente, o esmalte parecia-se sempre com o logotipo de uma banda de Black Metal.

O seu caminho rumo ao que muitos chamariam de fundo do poço começou com a banda Mortuus Angelorum, que fundou já com o seu pseudônimo eternalizado, com mais três membros. Markus ocupava apenas o posto de vocalista. Como era de se esperar, intrigas de orgulho e vaidade tomaram os âmagos dos adolescentes satanistas, e banda debandou-se. Anos depois, já estudado musicalmente, fundou a banda Tiamat; em que era o único membro, tocando guitarra, baixo, bateria; e urrando.

O garoto escrevia a faixa “Liquid Love and Solid Depression”, quando já não encontrava-se sozinho em casa. Lúcifer observava com distância, ainda sem desejar ser visto. Estudava o rapaz, observava o desgosto que dava vazão a cada pensamento, a cada sentimento, a cada ideia e palavra escrita no caderno de canções doentias. O vulto não sabia o porquê, mas adorava a forma como não fazia sentido o contraste entre o cabelo de trevas e os fiapos de barba loira.

De forma debochada, quando decidiu que queria ser visto, derrubou um vaso do corredor. Cacos vermelhos de porcelana espalhados pelo sangue pareciam sangue sólido. E de repende aquele ambiente isolou-se em temperatura próxima a zero. Markus assustou-se, e o medo tomou conta de seu coração por alguns momentos.

- Achei que não tivesse medo da morte.

Antes de replicar com ríspida rapidez, o garoto parou para fitar o sujeito. Demorou-se por tempo suficiente para que o antagonista tornasse a proferir sarcasmos.

- Sou eu quem decido quando e como morrerei. Gostei da maquiagem. Fugindo do corpse paint?

- Claro, todos vocês já fazem. As igrejas queimadas, o corpse paint, as mesmas músicas venerando o filho favorito de Deus, o qual vocês dizem não acreditar. Afirmam ser nacionalistas, nazistas, satanistas e ateus. Proferem palavras de violência sem saber o que realmente desejam atingir. Alguém precisa ser original aqui, não?

Markus tornou a demorar-se na resposta. Não era muito de falar, mesmo. Em nenhum momento deixou de olhar nos olhos do invasor. Curiosamente, não se passou pela sua cabeça questionar o motivo da visita. Muitos membros da cena o conheciam, dos tempos de Angelorum. A maquiagem cinza realmente o intrigava, estava perfeita. Era como um cadáver que havia morrido há poucos dias.

- Qual é a sua? Está em alguma banda?

- Faço parte de um grupo musical, sim. Se chama Inferno, e possui vários integrantes. Todos entoam maravilhosa melodia de arrependimento e sofrimento. Talvez queira se juntar a nós.

- Obrigado, mas já tenho o meu projeto. - Ria Jørnson.

- Eu sei. Tiamat, não? Afinal, ateu, satânico, nazista, nacionalista, com fé nos Aesir e nos deuses babilônicos. Diga-me, Markus, gosta de saladas?

- Meu nome é Svartanaglar.

- Você pode ser autointitulado Svartanaglar, atualmente conhecido e aceito pelo seu círculo como Svartanaglar; mas sempre nascido como Markus será.

Pela primeira vez naquele encontro, o garoto expressou raiva. Sabia que, no fundo, não havia motivos para irritar-se com tão óbvia observação; mas o orgulho é a porta para a irracionalidade. Lúcifer não aguardou resposta.

- Sabe, eu conheci Tiamat. Sujeitinho espirituoso. Um pouco de exagero nas histórias. Pessoalmente, prefiro Jörmungandr, serpente por serpente. Ainda assim, creio que sou a serpente favorita do Ocidente.

Markus caiu em risadas.

- E Gandalf, conheceu? E Jesus?

- Sim. - Lúcifer apertou o olhar, visivelmente tocado pela pergunta. - E ele é tudo o que exaltam, sem nenhum exagero. 

A entidade olhou para baixo, lamentando. Sempre oscilava os sentimentos, como uma criança, e isso em nada combinava com a fúria de um filho de Deus.

Markus não soube bem como reagir. Por pouco, mais palavras de sarcasmo saíram de sua boca, mas as conteve. Sentiu-se em desvantagem, pois até então era o vulto quem não parava de debochar. Viu em seu olhar o quão verdadeira parecia a resposta, por maior que parecesse a loucura disso, no mundo desencantado weberiano.

- Isso não é maquiagem, não é?

- Não. - Respondeu com simplicidade.

- Sabe… Decidi que o projeto se chamaria Tiamat pelo conceito de Caos Primordial, que ela representa. Quase nomeei a banda assim, aliás. Mas estaria entregue de bandeja. Acho que a existência está intrínseca ao caos, e a paz está no antes e no depois dela. Eu não acredito que ela existiu, assim como não acredito em Odin ou em Deus. Mas acredito em você.

Os olhos gélidos ergueram-se uma vez mais, curiosos.

- E quem sou eu, Svartanaglar?

- Aquele que invadiu a casa dos meus pais e veio me importunar. Aquele que diz conhecer deuses, mas nada fez para provar. Mas acredito que esteja aqui, e acredito no que parece sentir.

Lúcifer sabia o que significava referir-se àquele ambiente como a casa de seus pais. O rapaz nunca havia conhecido amor, seja fraternal ou romântico. Ele não sabia mais o que fazer da vida, e isso desde o fim de sua infância. Não havia sentido em existir, em viver dia após dia. Acordar, dormir, comer, foder, estudar, trabalhar, lidar com adversidades climáticas. O jovem Jørnson não sabia lidar com relacionamentos. Gostava das pessoas, mas ainda achava que não deveriam existir. Queria se mostrar mais grato aos pais, mas não sabia como, e acabou desistindo da ideia de tentar.

Markus estava prestes a suicidar-se. Não naquele dia, mas no dia seguinte, em seu aniversário de vinte e cinco anos. Apesar de pensar nisso com frequência, o garoto não sabia que o faria, e não planejava partir como forma de comemorar. O motivo da visita de Lúcifer era conversar com alguém que logo iria se matar. Ninguém melhor do que o membro de uma banda de Black Metal norueguês.

O anjo pediu permissão e, ao obter aprovação, sentou-se na cama, ao lado do jovem. O contraste em relação à sua chegada fez Markus entender que o objetivo da conversa aproximava-se, mas isso nunca aconteceu; ao menos não visivelmente. Lúcifer não queria conversar sobre os sentimentos do mortal, assim como não queria falar sobre o que aconteceria, e afetar o seu livre arbítrio; até porque tudo em questão já era sabido. A entidade só queria estar ali, realizando o ato humano de olhar nos olhos de alguém que precisa de um abraço. Queria trocar inúmeras palavras sem de fato as dizer, de forma que tudo o que foi proferido foi o menos dito pelos dois.

Svartanaglar sentiu quem o outro era, mas não pensou a respeito. Sentiu que perderia o momento, se o fizesse. E, quando o outro partiu, ainda não o fez. Deitou, e começou a pensar em uma música, de nome igual ao do seu pseudônimo. Quando acordou, na tarde de seu aniversário, nada mais lembrava, pois seria errado que o encontro afetasse o que estava escrito na alma de um suicida. O papel com a letra não foi encontrado pelos pais ou pela perícia, outro já o havia levado.

Lúcifer sempre entendeu o erro da criação, mas não como isso se mostra em termos sociais dos humanos. Svartanaglar o ensinou a compreender que o verdadeiro impulso da não existência nasce no âmago dos mortais quando estes não se ocupam de lutas cotidianas; como pobreza, doenças e crises sócio-políticas. Esses problemas apenas servem para distrair os humanos sobre o verdadeiro não-propósito da vida. Quando nações alcançam elevação na qualidade de vida de seus habitantes, a doença da alma - que já aflige a todos - atinge proporções severas. Isso não deveria ser ruim, pensa Lúcifer, mas no reinado celestial de Elohim é punitivo. Como pode o cerne da realidade ser tratado com punição? Haveria a chance de fazer justiça aos prisioneiros da guerra mental contra o Criador? 

A última criação de Jørnson ficou guardada por três décadas com o outro. Foi lida apenas duas vezes. No dia 23 de junho de 1991, e no dia da cerimônia de aceitação de Lúcifer, no Grande Salão.




I am Svartanaglar; born in the ethereal skies, grown in Hell. 
Because broken, they consider the strife easier. 
Let them. 
Broken, yes. Stronger, nonetheless.

Sons of Ancient Faith, time to rise has come.
Raise your weapons!
Atmospheric for centuries has been our doom.
In the horizon of events I see the flames that will change that.

Mea maxima culpa.
Autodescructiveness: no eloquence can beautify this.
Mother Freya, help me to not find the light.

Hope is an omnipotent fuel for many.
Yet, not for us.
Here, rage will have this role.

Sadly, information is on another level.
I miss the old songs and narratives about heroes and tragedies.
Uncertain truth can be beautiful in the long-term.

Heavens will be usurped. Elohim’s mistakes will be undone. 
Why? Because creation must be forgotten, like some stars.
Formerly Lucifer, now Svartanaglar; I pretend to rise.

Rise and fall, rules of life. Even immortal ones.



Lucas Giesteira

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