Conto: Hlidskialf



Longryn, o Recluso, preocupava-se em demasia ao longo dos últimos dias. Do lado de fora, o vento cortava a paisagem desolada pelo inverno ancestral. Os viajantes tomavam-se de existencialismo, face à depressão da estação. Mas não Longryn, que derramava algumas gotas de suor por vez, presenteando o piso com o que certamente seria puro gelo, porta afora. A preocupação não direcionava-se a espadas ou machados, como a literatura floreia constantemente aos mortais. O suor era tributado à joia com a qual o líder dos Aesir almejava presentear Yarin, descendente e amada de Lúcifer.
A ocasião do solene presente consistia na cerimônia orquestrada por Wotan, líder escolhido por Lúcifer, para tomar a frente dos deuses ancestrais. Este seria o centro da celebração. 
Yarin nada sabia sobre joia alguma, muito menos sobre a ocasião que justificasse o evento. Guerra não é motivo de pompa, pensava ela. Mas o anjo primordial sabia o que esperar. A existência é nominativa por essência. Sentimentos aos quais não atribuímos nomenclaturas abstraem-se em peso multiplicado. Os nomes dão às fagulhas a chance de queimarem com glória. E Odin sabia disso. Assim o faria de qualquer forma, sem nem mesmo sacrificar um de seus olhos.
Os viajantes desceram de suas montarias.
O bater da porta quase passou despercebido pelo anão, concentrado na precisão de tão nobre objeto. Olhando para cima:
–  Ora, não esperava que viessem buscar a encomenda pessoalmente, milordes. A que devo tamanha honra?
–  Não é preciso tentar diminuir a frustração com elogios adjacentes, Longryn. – Cutucou Lúcifer.  – Entendo que, apesar de seu apreço pelos soberanos, o conforto de seu pequeno mundo solitário lhe apraz. Por longos séculos, tentei fazer o mesmo com meus domínios, sem sucesso. Invejo sua simplicidade, sem, no entanto, mal agourar sua fortuna. Podemos entrar? O frio pode não nos afetar como aos mortais, mas a sina cinzenta deste lugar é poderosa.
– Longryn. – Cumprimentou o velho caolho, com respeitosa brevidade.
– Estou para terminar a joia. Que pedra trouxeram para adorná-la?
Uma vez dada a resposta, os dois entraram, e observaram a trajetória semifinal do trabalho do ferreiro. Nascardia era uma pedra passível de ser encontrada apenas em Álfheim. Lúcifer, em dado primeiro momento, desejava lembrar sua amada de que ele mesmo nunca havia se esquecido de sua bondade. Por consequência, porém, e como verdadeiro objetivo; desejava lembrá-la de sua gratidão pela companhia da luz às trevas. Gestos, assim como palavras, moldam a existência.
– Como a conseguiram? – Questionou o anão, após encerrar os trabalhos que precederiam a inclusão da Nascardia.
– Noskard. – Mais brevidade do Pai de Todos.
Noskard era o último elfo da falecida dinastia de Talanborn. Não teve filhos, apesar de encontrar um par. Tomado da simplicidade que Lúcifer logo mencionara, o príncipe entregou-se à vida oculta e esquecida por todos. Para muitos, isso não é viver; para poucos, é a única vida pela qual vale a pena resistir. Após a morte do pai, que não deu a Noskard outros irmãos, a dinastia enterrou-se na memória dos nostálgicos. Há muito não encontrado, o elfo achou digno sair do anonimato para atender ao simples, porém digno, pedido de Wotan. Não há nenhuma mágica concreta na pedra, apenas o poder do simbolismo. Um romântico por excelência, Noskard parecia entender o que muitos falharam ao tentar: a preocupação de Lúcifer com sua cônjuge antes da mais decisiva das guerras. Talvez aí resida o significado para o tradicional maniqueísmo do bem e mal, que tantos consideram infantil e de ingênuo simplismo. Noskard entendia o bem como a felicidade da vida humilde e protegida; sendo o mal a glória soberba que envenena dia após dia a vida de quem deseja alcançá-la, para depois entender que a felicidade não está lá. Lúcifer contradizia-se em pensamento, ao concordar com a visão do elfo, mas sem desistir de sua vingança. A joia simbolizava o bem que Yarin representava em sua existência conflitante.
Então, sem quaisquer transferências místicas do poder das entidades presentes à pedra amarronzada, Longryn encerrou aquele que seria o seu último trabalho. Odin deixou o recinto, aguardando do lado de fora, já montado em Sleipnir. Lúcifer tardou por algum momento, encarando o pequeno cadáver, caído ao lado da forja. Assim como Noskard, o anão recebera a dádiva da inexistência. Não havia má fé em ambos os atos, mas sim uma recompensa por seus favores. O anjo invejava o amigo recente, mas ainda precisava lidar com o mal que o afligia, e então despedir-se do bem que o escoltava nas trevas.
A viagem de volta ao Grande Salão encheu-se de pesar. A vitória aproximava-se, mas apenas Lúcifer sabia o preço a pagar. O vento do inverno realmente parecia realçar tais pensamentos, como cantigas primordiais que precediam qualquer noção musical convicta.
Ao adentrarem a festividade que contaminava o lugar, Lúcifer só pensava em Longryn e Noskard. Sem lamentos, mas algo próximo de saudade. Só os vira uma vez em sua extensa vida, mas o assassinato cria um vínculo subestimado por muitos. Não havia almas ou mínimos espectros de suas existências passadas, mas a ideia dos dois amigos quase os tornava presentes na cerimônia. E Wotan notava.
O Aesir confiava em seu aliado, como jamais confiara em Loki, mas enxergava algo do Jötunn no filho de Elohim. O mistério e a loucura domada não o afastavam de seu dever para com a aliança, mas observava a recente saga do anjo com atenção fria.

Longryn acordou em ambiente hostil. E o que seria mais hostil do que uma carne, nascida e permanecida no operístico frio de Niflheim, acordar nas elevadas temperaturas do Inferno? Se tivesse sido criado como todos os outros anões, em Nidavellir, estaria mais do que preparado para essa sensação. Mas Longryn nasceu de pais que não mais suportavam viver sob as montanhas quentes. Órfão muito cedo, manteve-se na desolação das terras protetoras de Hel.
A terra sob suas costas era áspera e de tom muito avermelhado. Esperava encontrar companhia, alentadora ou ameaçadora, e assim aconteceu. Esboçou aquilo que seria o mais próximo de um sorriso que um anão conseguisse demonstrar.  Conheceu Noskard nos tempos do Conselho de Yggdrasil, quando Wotan convocou membros de todos os Nove Reinos para acordar os procedimentos a serem tomados quando tivesse início o supracitado Ragnarök.
Longryn não fora membro de família nobre ou digna de quaisquer formas de destaque e reconhecimento. Isolamento não é reconhecido. Busca por solidão e paz de espírito são tratados com maledicência. E por isso Loki trouxe o anão esquecido ao Conselho. Noskard trabalhou com o isolamento, mas nascera em família nobre. No mais, não há realidade em que um elfo de luz seja menos ou tão respeitado quanto um grotesco anão forjador, seja de Nidavellir ou Niflheim.
Aqueles tempos de união  perante as distantes e, não obstante, forças do demônio ancestral de Musphelheim; uniram igualmente elfo e anão. Aqueles dias mostraram que solidão une os seres, ao passo em que proximidade distancia. A proximidade dos dois não poderia ter sido diferente. Literal nos idos do Conselho, mental em toda a sua posteridade. Nunca mais haviam se falado, e ainda assim próximos como muitos jamais imaginariam. Elos não devem ser questionados ou interpretados; apenas lá estão, como o próprio universo.
Mas a literalidade uma vez mais retornou, no pós vida. E amigo escoltou amigo na ardida caminhada. Para onde ir no Inferno? Não há. Mas Longryn e Noskard não são almas comuns. Svartanaglar também não o é. E ao seu encontro o alto e o baixo partiram.
Em meio à desolação árida, havia algum luxo. O castelo de Lúcifer era demasiado para o número de hóspedes que abrigava. Noskard sacou a Gjallarhorn, que arrancou maior reação de Longryn do que o semi sorriso anterior. Heimdallr não mais precisava anunciar o fim dos tempos. O som advindo, no entanto, sequer pode ser chamado de sombra do que fora antes. O suficiente para que os portões fossem abertos, aparentemente.
O cansaço quase os derrubou quando chegaram ao topo. A porta se abriu, mas não para os receber. Yarin saiu, sem preocupar-se em fechá-la. Cumprimentou os convidados e partiu em direção à escadaria. Nas sombras, já viam de longe o anfitrião. Agora de cabelos loiros e barba muito cheia, Svartanaglar portava-se com imponência, mas a mesma raiva em suas feições. 
-Longryn, muito ouvi a seu respeito. Qualquer conhecido de Odin é digno de consideração. A sua infelicidade está se mostrando por ser igualmente um conhecido do nosso querido Satanás. 
O anão assentiu, mas calado. Olhou para o elfo, que sorriu culposamente, como quem nada pode fazer.
-E acredito que o mesmo pode ser dito de você, humano.
-Oh, não! Mea culpa. Mea maxima culpa. Não gostaria de estar aqui, nunca quis. Ainda assim, se disser que os meus atos não me trouxeram aqui, estarei mentindo. Humanos são estúpidos, não? Ainda não me decidi se é pior parar aqui por suicídio ou porque Lúcifer coleciona quem ama.
-Lúcifer nã…
- Basta. - Cortou Naglar. - Eu só queria deixar de existir. É pedir muito? Não pedi para nascer, não pedi para continuar vivo e com muita saúde, num país que me deu todo o tempo para remoer meu vazio. Mas, se não posso deixar de existir, queria pelo menos existir com o Outro. Talvez Ele me ensinasse a amar isto. 
- Parece se queixar muito, para alguém que mora num castelo - Retrucou Noskard. - Aliás, parece ser esta a sua essência. Ser sempre agraciado com ótimas condições e reclamar ininterruptamente.
- Você também mora aqui. - Rangeu o humano.
- Não estou reclamando. 
- Me parece que todos aqui querem ficar sozinhos. - Observou acertadamente o anão. - Não se trata de ter luxo ou não. Nem mesmo se trata da maldita temperatura deste estrume de troll. Apenas isso é. Queremos isolamento. E, mesmo que cada um fique em cômodo separado dos demais, ainda saberemos que há vida ao lado.
- Vida? É assim que chama o que temos? - Mais veneno de Tiamat soltado pelo humano.
- Estamos te ouvindo falar não? Você parece bem vivo para mim, terráqueozinho revoltado. - O elfo somou mais farpas. - Agora fale o que viemos aqui fazer.
Svartanaglar aceitou o corte, pois de fato havia trabalho a fazer, e não parecia existir muita escolha. Sentou-se e convidou-os a fazer o mesmo.
Quando Asgard foi destruída, a sua explosão formou uma nova galáxia. Até o presente sem vida que a habitasse e, assim, sem nome. O território desfaleceu, mas certos artefatos perduram até o fim de todas as coisas. Hlidskialf paira no centro dessa galáxia, em um satélite menor do que a nossa Lua. Se houvesse vida para sentar-se no trono de Wotan, veria tudo o que cerca-lhe, ao menos na distância que cobre os arredores da galáxia. Foi-se o tempo em o Pai de Todos nela sentava-se para ver os Nove.
Com o tempo surgirá a gota da vida naquele longínquo espaço. Levará bilhões de anos, mas para alguns é como esperar o Natal a partir de fevereiro. No entanto, ninguém ali sentará em Hlidskialf, pois Wotan reclama o que é seu. Muitos rezam aos deuses para serem atendidos, mas a quem os deuses imploram? Disso, nada sabem. Não os maiores, ao menos. Não Wotan, Odin, o Pai de Todos. Wotan ordena, para ser atendido. Que rezem os outros, se assim desejarem. 
Noskard, o Não Tão Esquecido; Longryn, o Recluso; e o saudoso Svartanaglar, o Suicida. Servos de Lúcifer e Wotan, filhos do vazio, amantes da desolada solidão, em busca de Hlidskialf. Que assim seja.


Tanngrisnir e Tanngnjóstr puxavam a carroça que levava a pequena trindade ao canto juvenil do universo. Com a Bifrost destruída, todo poder teve de ser conservado em Gungnir, a lança de Odin. Esta havia sido sumariamente emprestada a Svartanaglar. Até mesmo o humano reclamão derramou lágrimas ao receber honra quase indescritível. Desde o seu início, se algum habitante de Midgard eventualmente fosse receber as armas de Odin ou Thor, que fosse um escandinavo. É claro que as emoções não deveram-se apenas ao empréstimo da lança. Conhecer as entidades que moldaram toda a sua cultura fariam qualquer norueguês nacionalista e anti cristão encontrar-se em prantos. Todos os outros compatriotas consideravam o seu grupo estúpido por tornar a venerar deuses inexistentes; e o fato de muitos membros do Black Metal não verdadeiramente o fazerem só permitia o crescimento do rancor pelo desprezo do resto de seu país e do mundo. Simbolismo, sempre foi um simbolismo, mais pertinente à negativa do Cristianismo do que ao acolhimento dos deuses pagãos. Mais uma vez a literalidade tomou partido, e Svartanaglar acertou ao errar perante o mundo globalizado laico-monoteísta.
Antes de pousarem no satélite, os três avistaram o trono, e deram conta de que estava ocupado. Um ser de proporções humanas, mas belíssimo de maneira inquestionável, encontrava-se sentado. Suas asas repousavam, cobrindo o trono como cabelos cobrem ombros. Seus cabelos castanhos eram curtos, e sua barba parecia ter crescido há mais dois meses. Noskard e Longryn não faziam ideia de quem fosse, apesar de reconhecerem a categoria à qual pertencia. Svartanaglar, contudo, não só o reconhecia; também notava que não parecia mais fazer parte da categoria identificada pelos outros. Não impressionou-se com a presença ou com a mudança, mas entendeu que não haveria tranquilidade.
O primeiro a pisar na lua foi o contextualmente mais sabido dos três. Tomou a frente, enquanto o gordo e o magro trabalhavam com a recém informada verdade. Ao aproximar-se suficiente para iniciar uma conversa, Svartanaglar encerrou os passos de forma brincalhona, e esboçou um sorriso desconfiado.
-Só buscamos o trono de um velho amigo. Se quiser, posso trazer uma cadeira.
O anjo achou graça. 
- Gostei da repaginada. Nunca achei que um anjo ficaria bem de cabelo curto. Nunca achei que EU acharia alguém bem de cabelo curto. Mas a vida dá voltas. Se for um anjo bonzinho, podemos fazer caber quatro na carroça. 
Pausa breve.
- Se bem que você tem asas, não precisa dos nossos bodes. Posso cortar as suas asas? Vão combinar com o cabelo.
-Pessoa difícil em vida, pessoa difícil em morte. - O anjo quebrou o silêncio com voz grave, ecoando pela lua e munindo os outros dois de sutil insegurança.
- Só sendo difícil para ser mimado pelo Tio Lulu.
- Se eu já não soubesse, diria que acaba de me entregar que Odin uniu forças com Lúcifer. Mas a esta altura isso já é um tanto óbvio. Eximo-te a culpa. Quem são a moça e o urso?
Svartanaglar gargalhou forçadamente, enquanto os dois não fizeram o menor esforço para ocultar a raiva. Soltaram xingamentos redundantes e que em nada acrescentaram ao andar da carruagem.
- Estou vivendo para ouvir um anjo chamar um elfo de moça. O quão irônico é isso? - Retomou o homem.
- Mas não sou mais um anjo, não é?
- Ok, vou cortar as asas.
- Chega!
Pela primeira vez Svartanaglar parou por completo. Não por medo, mas porque respeitou a chegada do assunto derradeiro. Prosseguiu:
- Vai nos impedir de levar Hlidskialf?
- Os anjos voam?
Explosão. 
O espaço era preenchido por pura luz. Noskard urrou de dor; Longryn derrubou Svartanaglar, e em seguida foi nocauteado pelo anjo. Ouviram-se gritos, ouviram-se golpes, mas nada foi visto. Noskard gritou pelos bodes, que o buscaram com Longryn. Svartanaglar permaneceu no combate desvantajoso com a criatura, que enxergava na luz pura.
Quando Tanngnjóstr e Tanngrisnir afastaram-se pela matéria negra, o satélite explodiu. Miguel e Svartanaglar desintegraram-se, e Hlidskialf não mais permitiria a Odin alcançar o cosmo.
Longryn recuperava-se, enquanto socorria o amigo. Não havia ferimentos em seu corpo, exceto na face.
- Estou cego! - Gritava continuamente o elfo. - Maldita seja essa guerra de anjos e deuses.
O anão olhou para trás, não viu ninguém.
No entanto, Miguel estava bem, e trazia um Svartanaglar ferido consigo. Um dos poucos dias em que Odin não fora atendido. Que assim seja.

Lucas Giesteira

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