A realidade ontológica do ser em Heidegger, Winnicott, e Husserl



Quando se pensa em observação da realidade, é comum o antagonismo entre a realidade como interpretação do mundo e a realidade em si, inquestionável.

Martin Heidegger, Donald Winnicott e Edmund Husserl são figuras essenciais na luta entre o ontológico e o metafísico, quando se trata de compreender o conceito de realidade. Heidegger entende que esta seria “culpada” pelo pensamento niilista contemporâneo. Ao se tentar esmiuçar uma crença – e partindo do pressuposto de que crenças não são explicadas -, deixa-se de acreditar em tudo.

Hugo Disselkoen detalha a ideia que Heidegger tem do idealismo:

O parágrafo 43 de Ser e tempo mostra, na seção “Realidade como problema do ser do mundo exterior e de sua demonstrabilidade”, como a “possibilidade da transcendência da consciência até a esfera do real” constitui um problema que está peculiarmente mal formulado na base, pois tal formulação implica a suposição da existência de um sujeito extramundano que faz alusão correlatamente, enquanto mundo exterior, a um sujeito exterior a esse mundo. Se, por um lado, em sua crítica ao idealismo, Heidegger bem admite um importante acerto do idealismo, na medida em que a sua tese, segundo a qual o ser e a realidade estão apenas na consciência, significaria que o ser não pode ser compreendido por meio dos entes, por outro lado, conclui que o idealismo “constrói sua interpretação da realidade em cima do vazio”. (2013, p. 247).

Heidegger entende a vida humana como interpretação espontânea da realidade em si e de tudo. Para o autor, a pessoa só existe em sua relação com o existir. Daí cria o conceito de “Dasein”, palavra que reúne as ideias da relação da essência do homem com o “ser” e de sua abertura do ser em si mesmo. Dasein significaria, portanto, “ser aí”. Quando fala do “ser no mundo”, Heidegger isola cada palavra da frase. O ser que existe, o mundo em que esse ser existe, e a forma de ser em si. O autor sublinha que a divisão é feita apenas para fins analíticos, pois na prática o fato se dá de forma unitária. Esta forma mostra-se autoexplicativa, pois o mundo só pode ser caracterizado quando se pensa para quem ele existe, enquanto o ser precisa existir em um local.

A pergunta básica de Heidegger sobre o sentido do ser é a mais teórica e ao mesmo tempo a mais concreta. Zeljko Loparic pertinentemente afirma que: “Embora seja, sem dúvida, o mais abstrato dos grandes pensadores ocidentais, Heidegger é, não obstante, um filósofo da concretude”. A partir disso, Loparic relaciona o dasein heideggeriano com o conceito de Winnicott sobre identidade: “o ser humano tem o mesmo problema central identificado por Winnicott e Heidegger como o problema do sentido do ser” (1995, p. 41).

Ao tratar da relação de uma mãe – considerada minimamente boa ou competente – com o seu bebê, Winnicott compreende que para este não existe mais nada além dele mesmo. Havendo uma relação intrínseca entre mãe e filho, conclui-se que para o bebê a mãe faz parte dele. Afirma que o apoio do ego materno facilita a organização do ego do bebê. E assim, o bebê inicia o processo de formação de sua própria individualidade. A criança começa a enxergar o que existe ou não, e isso dá início à formulação de palavras muito simples (que denotam conceitos complexos), como “ser”. O autor explicita que a contraposição do termo “ser” em detrimento de “existir” implica no fato de que se trata de um questionamento natural, e não erudito; e por isso o autor busca a questão em sua origem. Também diferencia “ser” de “eu sou”, em que um configura-se no estágio anterior ao outro, respectivamente. “Eu sou” só existe quando se é com outro ser humano, quando surge a questão do eu. Antes disso, porém, já existe o sentido de ser.

Winnicott define três sentidos para a realidade: realidade subjetiva dos objetos submetidos ao controle mágico, realidade dos objetos de uso e realidade dos objetos objetivamente percebidos. Winnicott compreende a separação entre realidade externa e interna não é tomada como como adquirida, e não existente em si. Os objetos não são bons ou ruins pela sua existência real, mas pelas expectativas do sujeito. Assim, o autor põe em questão a realidade, não podendo ser dada de uma única maneira. Primeiramente o sujeito (o bebê) precisa ter contato com a realidade externa, para depois aprender a usar objetos. Só então o sujeito aprenderá a desenvolver relações cognitivas com os objetos reais. Os objetos de contato primário são chamados “subjetivos” e precedem a compreensão de realidade dos objetos do mundo externo. A relação com a realidade subjetiva é anterior à separação entre sujeito e objeto e à ação e representação. No espaço e no tempo do brincar o bebê se encontra em uma realidade de transição.

Loparic afirma que cada uma das três formas de acesso ao objeto (contato e identificação primária, brincadeira, uso e representação) corresponde um modo de realidade do objeto:

Os objetos subjetivos, dados na experiência de contato e da identificação primária, existem como presenças imediatas, incondicionadas, com um sentido de realidade subjetiva. Não podendo ser perdidos, nem precisando ser esperados, esses objetos se manifestam como totalmente submetidos ao poder do bebê. Os objetos transicionais do espaço-tempo potencial, acessados no brincar, são presentes de maneira diferente, paradoxal, derivável do modo de espacialização e de temporalização do brincar: por um lado, manifestam-se como criações sempre factíveis ou repetíveis; por outro lado, eles têm o sentido de achados advenientes, resistentes à onipotência, precários, e, por isso, externos e temporais. Quanto aos objetos do mundo externo, dados na representação perceptiva, eles não são nem disponibilidades internas, nem suportes transientes, mas presenças sólidas, independentes, substanciais, dadas no espaço-tempo intersubjetivamente compartilhado e externo. Como se vê, os objetos acessíveis ao ser humano diferem entre si em termos espaço-temporais. Essas diferenças, que correspondem aos modos de espaço-temporalização das vias de acesso, não devem ser entendidas como determinações dos objetos eles mesmos, base para novas classificações destes, mas como determinações do modo de realidade de objetos. Aqui o pediatra se torna, sem querer, um pensador do múltiplo sentido espaço-temporal filósofo. Não apenas a presença dos objetos, também a realidade do sujeito foi submetida a uma revisão que, por vezes, ficou apenas acenada. O jogo realista das forças pulsionais antagônicas cede lugar a um acontecer de tipo totalmente distinto. O existir do lactante humano não é algo dado, desde o nascimento, mas é algo que precisa ser integrado, com e no espaço-tempo (1995, pp. 55-56).

Já Husserl, em sua "fenomenologia transcendental", tem a forte intenção de fundamentar a filosofia como uma ciência rigorosa. Husserl acreditava na plena racionalidade da filosofia, visando atingir o sentido íntimo das coisas através de uma radical reflexão.  Tourinho afirma que Husserl não se contentaria “com coisa alguma que não se revelasse em seu sentido próprio à consciência como um dado absolutamente evidente”, e portanto fielmente visava “o rigor absoluto necessário à pretensão de fundamentação do saber filosófico a partir do que é suscetível de ser conhecido de modo originário” (2012, p. 854). Essa pretensão rigorosa da ciência implica em seu pleno afastamento de qualquer qualidade empírica.

A fenomenologia de Husserl entende o fenômeno em sua pureza absoluta, a coisa enquanto revelada à consciência. Tudo o que é passível de termos consciência é fenômeno. Essa consciência envolve não apenas objetos, mas ações. O autor identifica dois tipos de ser. O primeiro é o do mundo exterior, que vai além da consciência (transcendente); ao passo em que o segundo é o do mundo interior (transcendental). Paralelamente a esses dois tipos de ser, existem dois tipos de realidade. O do mundo exterior é o ser real, natural; enquanto o do mundo interior é irreal (não confundir com fictício; trata-se, sim, de uma realidade, mas particular).

A primeira etapa do método fenomenológico é a do epoché. A palavra grega é usada por Husserl para demonstrar o mundo encarado na maneira como se apresenta à consciência, redução que leva à transcendentalidade (terceira etapa).

A segunda etapa trata da redução que encontra nos fatos singulares a sua essência. Uma vez captadas as essências, pode-se variá-las infinitamente. Na redução transcendental, por fim,
Dirijo-me, nela, para mim mesmo e para a minha imanência e me torno, assim, uma realidade concreta mundana com meus atos de consciência. O eu se apresenta, agora, como transcendente e, por isso, ele fica também fora de circuito. E atinjo o eu transcendental fenomenológico, o campo da auto-experiência transcendental fenomenológica. Temos aí o fato de o eu, assim depurado, tornar-se concebido na sua relação com o objeto mundano no sentido comum da palavra, mas um objeto puramente intencional, uma idealidade pura, meramente significada, desprovida de caráter psicológico. Perdi o mundo, mas o ganhei de um modo mais puro, retendo o sentido que não brota dos objetos, mas de mim mesmo. É do meu eu transcendental que o mundo objetivo haure todo o sentido e valor existencial. Atingi o eu verdadeiramente radical, só inteligível na sua expressão de ego cogito cogitatum (Marques, 1997, p.44).





Referências

Disselkoen, H. (2013). Sujeito e realidade em Schelling e a crítica de Heidegger. Discurso, v. 1, n. 42, 245-266.

Loparic, Z. (1995). Winnicott e o pensamento pós-metafísico. Psicologia USP, v. 6, n. 2, 39-61.

Marques, Jordino. O método fenomenológico em Husserl e Heidegger - Diferenças e aproximações. v. 2, n. 1 (1997). Pp. 41-54.

Tourinho, Carlos. A consciência e o mundo na fenomenologia de Husserl: influxos e impactos sobre as ciências humanas. Estudos e Pesquisas em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 12, n. 3. 2012, p. 852-866.

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