Conto: Corpo Abandonado



Em um país em crise, aquela rua encontrava-se vazia. Após as onze horas as pessoas evitavam sair de casa, aquela parte do bairro era mal iluminada e ninguém sentia-se seguro. Quanto ao som, podia ser dito que havia silêncio, não fosse pelos barulhos em uma casa específica. Por alguns momentos uma mulher gritando, e em seguida um bebê chorando. Agora os céus encontravam-se desprotegidos, e se as pessoas pudessem ouvir os anjos, o lamento ecoaria em seus ouvidos.

Do outro lado do continente, a garota permanecia sentada no estacionamento, olhando para as estrelas, enquanto Lúcifer perguntava-se como uma criatura tão doce podia vir de um monstro como ele. Abriu um sorriso melancólico e começou a andar vagarosamente até Iva, cada passo contra a grama gerando um som atmosférico para aquela situação. Sentou-se ao seu lado, as mãos não mais tremendo. Apontando para os céus, disse esperançosamente: "esse é o meu legado para você, para todos os meus filhos". Olhou para baixo, a esperança escorrendo para a terra sob seus pés: "mas antes algumas estrelas terão de morrer".

Mais poucos minutos e Pietro já estaria atrasado. Precisava sair logo de casa para buscar a ex-namorada no terminal de ônibus. Os dois conversavam por mensagem e a garota o atualizava se chegaria no horário previsto ou não. Quatro anos haviam se passado desde o rompimento, e retomaram contato três meses antes do reencontro. Não houve nenhum clima nas mensagens que não fosse o de amizade. Iva tomou a iniciativa, com a intenção de que pudessem conversar de vez em quando, casualmente, e a pretensão dele era a mesma. Muito havia mudado. Quando estavam juntos, Iva morava com o irmão mais velho e fazia graduação em Jornalismo; enquanto Pietro morava com a tia por parte de pai e era recém-formado em Direito, mas decidiu não exercer a profissão para seguir como fotógrafo. Agora ela trabalhava em um site de enorme popularidade e ele retornara ao Direito, ambos moravam sozinhos.

Algo quebrou a ideia de casualidade virtual na mente dela, e no começo Pietro não sabia o quê. Insistiu por mensagens para que ela dissesse o motivo de querer marcar um encontro cara a cara, mas ela insistiu mais no contrário. Decidiram marcar o encontro em uma sexta à noite, e ela retornaria ao estado vizinho na tarde do dia seguinte; dormiria na casa dele. Alguns dias depois a lembrança do que ocorrera meses após o término iluminou a sua mente, e uma quase certeza de que tinha relação com aquele sonho tomou conta dele. Pietro sonhara com o falecido pai e com um ser estranho, que jamais havia visto. Meses antes do término Iva também havia visto uma pessoa diferente, mas a falta de diálogo em tempos de crise de relacionamento impediu uma conversa mais aprofundada e uma consequente descrição visual do sujeito. Ele, no entanto, suspeitava que houvesse uma relação entre as duas ocasiões, se é que um sonho pode ser chamado de ocasião.

Após entrar no vagão do metrô, Pietro começou a tremer, tamanha a ansiedade. O que não compreendia era o motivo de ela estar ali, se nunca sentiu (e ainda não sentia) um amor apaixonado pela garota. No passado compreendeu que havia exercido a função de ajudá-la a passar por uma fase muito difícil. Seria a ansiedade atual uma preocupação em função do amor fraternal que ela despertara nele desde o princípio? Cuidar de Iva era como um impulso natural que havia sido deixado de lado pelos últimos anos, e agora retornava junto dela. Em toda a sua vida nunca uma viagem de metrô havia demorado tanto em sua mente, e a estação de sua casa não localizava-se tão longe da estação daquele terminal. Cada parada, cada demorado segundo na contagem para que as portas abrissem e fechassem arranhavam um pedaço de sua mente, e já começava a se arrepender de ter concordado com a viagem dela.

Saiu da estação e seguiu até o terminal, tentando controlar o corpo, que insistia em denunciá-lo. Ao chegar no lá, antes de encontrar Iva, avistou um gato preto. O impulso de ir até ele e acariciá-lo veio tão naturalmente quanto o de correr e abraçar uma pessoa amada em um aeroporto. O animal não só não fugiu, como ronronou diante do afeto do humano aflito. Enquanto acalmava-se um pouco com o felino, Pietro ergueu os olhos para o céu e notou um tom levemente avermelhado. Olhou ao redor e não percebeu nenhuma outra pessoa fazendo o mesmo. Até aí, nada demais, durante a correria em uma metrópole ninguém ocupa-se das pequenas - mesmo que alentadoras - coisas. Em meio aos segundos de distração, o gato o deixou, e mais uma vez o impulso de ir até ele tomou conta de sua mente.

Após alcançá-lo, os dois caminhavam quase despretensiosamente, observados pelos céus hemorrágicos. O local estava repleto de gente, mas para ambos o sentimento era de solidão, exceto pela companhia de um ao outro. Pietro sabia que conhecia o gato. Caminhara com ele em seu bairro, há mais de cinco anos. Ora, que ideia das mais idiotas. Como, em meio a uma metrópole de milhões de habitantes, em meio a tanto tempo e em espaços um tanto distantes, tal reencontro poderia ocorrer? Mas como poderia se tratar de outro animal, se a situação era tão semelhante, e ambos os gatos comportavam-se da mesma maneira falsamente despretensiosa? Em ambas as vezes havia algo com relação à Iva e ao vulto do sonho. A suspeita concretizou-se quando viu a garota a poucos metros. Olhou para o guia silencioso e despediu-se, antes de enfrentar a criatura hostil, sentada no banco com um leve sorriso, diante da situação.

Os dois cumprimentaram-se com um abraço nem curto e nem longo o bastante. No início ele estava cheio de timidez, mas ao perceber tamanhas segurança e determinação nela, juntou coragem e ambos entraram em uma cafeteria no bairro dele já como iguais. Passaram o caminho jogando conversa fora e recomentando sobre assuntos que tiveram na Internet.
Eram tempos de mudança, mas não de mudanças harmoniosas. Tempos de crise. Não obstante, nada parecia afetar a elitista elegância do Paraíso. Assim como o tempo, não havia temperatura, apesar de os habitantes possuírem capacidades sensoriais muito melhores que as de um humano médio. A luminosidade vinha das estrelas de primeira geração - impossíveis de se ver da Terra - e era perfeitamente balanceada. As áreas verdes ocupavam a maior parte daquela dimensão, mas também havia uma arquitetura de desenho muito diferente das nossas, e ao mesmo tempo muito semelhante. Havia uma preocupação estética e elitista, mas que nunca superava a necessidade de engenharia. A fauna e a flora eram uma mistura das de todos os mundos criados por Ele, consistindo em uma genética perfeita. Não havia falta de alimentos, pragas ou quaisquer formas de violência. Não havia fome ou sede.

Havia uma fonte de onde jorrava uma água dourada, com a densidade igual à de qualquer água pura encontrada na Terra (ou em quaisquer mundos). O seu poder era o da restauração de qualquer grau, não importa qual fosse o dano. Ela era cercada por uma densa e elevadíssima vegetação circular - como a própria fonte. Não havia proibições com relação à frequentação do local, mas também não havia motivos para que os habitantes - anjos e almas elevadas - desejassem banhar-se. Há muito não havia danos a serem reparados na população; a exceção era um estrangeiro quase completamente prejudicado, convidado pelos anjos entrar na fonte. O perigo iminente ameaça o brilho das estrelas primordiais, e o estrangeiro representava alguma esperança extra. Uma aliança foi forjada com o mesmo esforço com que se forja a mais poderosa das espadas.

Todos temiam uma traição por parte dele. Lúcifer havia sido banido após uma guerra que deixou marcas por alguns séculos. Materialmente tudo já estava pleno e harmonioso, mas as mágoas eram eternas como suas vidas - só deixariam de existir através do assassinato. A necessidade gritava mais forte do que qualquer silencioso e peçonhento rancor; e o perdão foi concedido pelo novo senhor dos céus, Metatron.

O que se temia, porém, aconteceu. A guarda celeste havia descoberto que Lúcifer abrigava as entidades pagãs em seu reino de trevas. Uma guerra entre os anjos e as entidades estava para começar, dada a recente fuga delas da aconchegante prisão em que residiam há séculos terrestres. Lúcifer era possuidor de um vasto reino e, se restaurado pelas águas da fonte, quase tão poderoso quanto Metatron. Com o tempo a tendência era a de que o superasse, daí um forte acréscimo ao medo de que o anjo reerguido os traísse. A inteligência de Lúcifer era bem conhecida, e todos esperavam que ele previsse uma possível traição posterior por parte de Metatron, que não aceitaria ceder o trono.

A beleza harmoniosa dos céus não se aplicava às fronteiras do reino. Entre o Paraíso e os outros mundos havia um oceano misto. As margens ligadas aos outros reinos eram banhadas por águas negras e acometidas por severas tempestades, ao passo que as que faziam fronteira com os céus eram serenas e cristalinas. A mudança era gradual, sendo o meio do oceano equilibrado. Ainda na porção severa havia um pequeno barco de ouro, de apenas um tripulante. Gabriel nunca sentira-se tão impotente em toda a existência, nem mesmo durante as Guerras Celestiais. O tempo de travessia, convertido para o tempo terrestre, seria de aproximadamente setenta dias; mas tanto nas fronteiras quanto no Paraíso não fazia diferença, não havia tempo para ser sentido. Explicações eram devidas ao novo senhor, e possivelmente uma consequente punição.

- Pietro, você tem cuidado de mim há tanto tempo, e nem sei como agradecer...

- Mas fazem anos...

- Por favor, Pi, não me interrompa. - Tentou responder com carinho no tom e no olhar, os olhos marejando. - Eu só consegui viver bem nos últimos anos pelo apoio que você me deu quando estávamos juntos. Meu irmão e os outros tentaram, mas ninguém me entendia como você, ninguém tinha paciência. As pessoas sempre estão presentes para ajudar, esperando que logo vai passar e elas não terão mais que se responsabilizar. Aí elas percebem que não passou, que terão que se comprometer mais se ainda quiserem ajudar. Mas ninguém tem tempo, todos têm preguiça. Você fazia inteiramente parte da minha vida, estava sempre lá quando precisava. Tudo mudou nos últimos dias e você é a primeira pessoa, talvez única, para quem preciso contar.

Iva aguardou, esperando que Pietro tivesse algo a dizer, mas agora só havia curiosidade. Prosseguiu.

- Descobri porque a Amanda se matou...

- Nós já sabíamos o motivo, ela estava em um estágio muito elevado de depressão. - A interrompeu novamente, tendo algo a dizer no momento errado.

- Pietro, eu não estaria tocando no assunto se não fosse relevante. Todo mundo sabe que ela tinha depressão, e que isso levou ao suicídio, mas tinha algo por trás. Alguém por trás. Amanda era uma filha reencarnada de Lúcifer, como eu.

- O quê?! - O vulto do sonho podia ser algo sinistro e sobrenatural, mas não tinha como uma pessoa estar pronta para acreditar que a ex-namorada descendia do Diabo. - Que droga você está usando?

- Você sabe do que estou falando, ele me contou que apareceu para você. - Ela demonstrava confiança como nunca. - Com o seu pai.

Os olhos se arregalaram; era natural, inevitável. Quando alguém menciona o sonho mais estranho que você já teve e não contou a ninguém, qualquer dúvida se dissipa como o fogo em meio ao mais forte dos ventos. Pietro poderia perguntar como se deu a situação, como a garota conheceu o Diabo, onde e quando. Poderia gaguejar até conseguir formular a frase, mas foi bem direto ao questionar qual a relação do pai com o anjo.

- Seu pai zela por você desde sempre, ele te ama muito. Ele se preocupa, e algo o aflige. Lúcifer sabe o motivo, mas eu não sei o que é. É por isso que estou aqui. Eu devo tudo isso a você. Devo explicações sobre a Amanda, sobre mim; e devo alertar você sobre seja lá o que for. - Começou a chorar. - Eu estou preocupada, Pi, agora tudo está mudando, eu não sei o que vai acontecer...

Explosão de luz. Por alguns instantes ninguém na cafeteria conseguiu enxergar direito. Desespero.

Iva foi a primeira a recobrar a visão, e puxou Pietro com força. Mesas e cadeiras ao centro voaram para os lados, quase atingindo os dois. Alguns feriram-se gravemente. Ela olhou para o ser luminoso que pairava no meio do salão. Muito alto, de pele translúcida, longos cabelos loiros como o ouro que banha os céus. Os seus olhos muito laranjas demonstravam uma raiva cujo motivo ela não conseguia compreender. Sendo filha de Lúcifer ou não, nada fizera. Havia uma espada nas mãos do anjo, com sete diamantes vermelhos espalhados pelo centro da lâmina de cento e quarenta centímetros, um cabo negro com um pequeno desenho cúbico no centro; e pesava mais de quarenta quilos.

Gabriel começou a andar na direção dos dois, mas Iva sabia que o alvo era ela. Pietro quis fugir, porém logo desistiu, ao vê-la não movendo qualquer parte do corpo. Pelo contrário, ergueu-se e encarou o anjo como uma igual, o olhar tomando emprestada a mesma fúria que a dele. Nenhuma palavra foi dita. Nenhuma palavra precisava ser dita. A lâmina foi erguida e empunhada em direção ao alvo, mas atingiu o acompanhante. O medo que afligia a alma de seu pai foi concretizado, e o fardo escorreu junto de cada gota de sangue derramado no peito do filho. Os gritos da garota ecoaram não só pela cafeteria, mas também pelo reino que aguardava o retorno do anjo, se cumprisse o dever.

Era o que qualquer um esperaria, se o gato não tivesse pulado e se metamorfoseado no instante em que bateu contra a lâmina da espada ainda fincada no rapaz. A espada agora era de Lúcifer, um Lúcifer restaurado pelas águas da fonte. Se ambos estivessem desarmados, Gabriel já estaria em desvantagem; a espada era o único jeito de qualquer anjo vencê-lo, e por isso Metatron a emprestou para o mensageiro de Deus. Não teria como Lúcifer consegui-la antes que fosse deixada por alguns instantes no cadáver de alguém, e ele sabia que não seria no da filha.

Enquanto a garota ainda se rebelava contra o mundo, o seu pai atacou o outro, sem a intenção de matá-lo. Tudo o que necessitava era mandar uma mensagem, e assim o fez. Em seguida levou a garota para um lugar menos perigoso, sabendo que já teria de enfrentar um ódio recém-nascido.

Dez semanas depois, em uma dimensão muito distinta, um barco alcançava o litoral das terras nobres. O anjo humilhado, de cabeça raspada, asas cortadas e sangue seco espalhado pelas costas; caía de joelhos na areia. Um pequeno grupo veio buscá-lo, e voaram em sincronia, levando-o numa maca até o trono. Desta vez não caía de joelhos, era colocado à força. Ao alto, sentado no trono de Deus, Metatron já começava a puni-lo com o olhar azul. Trajava uma armadura de luz, que só deixava visíveis suas mãos, pescoço e cabeça. Os cabelos castanhos estavam presos em um longo rabo de cavalo. Como quaisquer criaturas angelicais, o rosto era totalmente desprovido de fios.

- A minha espada era um dos bens mais valiosos deste lugar, e a dei em suas mãos para que não fosse subjugado por nosso irmão. Fica claro para mim que não levou muito em consideração ao distrair-se e entregá-la. Tenho certeza de que ele apreciou muito o seu presente. O problema não é a espada ser MINHA, mas sim uma de nossas pouquíssimas vantagens contra ele. Não só perdemos a nossa vantagem, como aumentamos a dele. - O pedantismo da ira de Metatron era o segundo castigo.

- Senhor... Não foi distração minha, o garoto a empurrou e Lúcifer estava escondido no recinto...

- E ISSO NÃO SE PASSOU PELA SUA CABEÇA? Eu mando alguém de minha confiança matar uma filha do Diabo, e ele espera que será como matar uma tartaruga que passeia pelo deserto! A única arma que supera a minha é a espada de nosso Pai, e nem sabemos mais se ela existe! O que espera que eu faça? Que jogue o seu corpo na fonte e depois o mantenha em sua posição?

- Eu aceito qualquer...

- CALADO! É claro que você aceita qualquer punição, não tem escolha...
A expressão furiosa converteu-se em sincera tristeza e as palavras adquiriram tom um tanto baixo.

- Gabriel, meu irmão, meu amigo. Nunca aguardei por este dia, nunca o tive como possibilidade em meus pensamentos mais sombrios, e por isto pesa em minha consciência o banimento que o aguarda. Não farei da mesma forma que fizemos com nosso irmão; pousaremo-nos no reino dos homens, sem as asas, sem nada que o caracterize como um de nós. - Longa pausa. - E espero que encontre algum regozijo em seu novo caminho. Que o legado de nosso Pai caminhe por onde estiver e a poeira cósmica de seu outrora corpo o abençoe. Permito-te despedir-se de quaisquer irmãos antes de partir. - Fora dado o terceiro e definitivo castigo.

O mensageiro não conseguiu proferir nenhum dito, apenas assentiu com a cabeça, os olhos sem conseguir conter as lágrimas. Naquele momento o único fator que o caracterizava como anjo era estar ali.

Em um contexto repleto de seres dos mais poderosos, uma vida humana nada significa. A garota, contudo, também o era, não importava qual fosse a sua ancestralidade. Lúcifer jogou sujo, visando um prêmio muito compensatório, mas a filha não mais se importava com disputas celestiais, só sentia dor, raiva e culpa pela morte do amigo e traição do pai. O que caracteriza uma pessoa como tal está nas pequenas coisas, em cada sutileza, em cada trivialidade. Qualquer feito que transcenda a modesta natureza humana é pago com o fardo de sua dissipação. Poucos querem ser pequenos, mas todos sofrem ao tornarem-se grandes.

Comentários

  1. Me agrada leer una interacción entre este cuento y "el monarca de ningún lugar"
    Si bien los leo similares
    Una historia enriquece a la otra
    Me agrada :)

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