Conto: Saudações a Marduk



Yarin aprendeu desde muito jovem que havia dois caminhos na floresta para alcançar o rio e trazer água de volta para a cabana em que vivia com sua mãe. Em um deles a luz do sol perpassava as árvores, iluminando a trilha que conduzia às margens. O outro, devido à exacerbada densidade de sua vegetação, era puro negrume. Por óbvias razões ambas percorriam o primeiro.

Por volta de seus doze anos de idade, Yarin começou a cuidar de sua já debilitada mãe, acometida pelos malefícios das precoces velhices da época. Coincidentemente, tornara-se biologicamente uma mulher. Os tempos de delírios infantis a respeito de criaturas encantadas ou mesmo monstruosas, passaram e foram rapidamente esquecidos, tamanha a responsabilidade que pesava sobre os seus cento e quarenta e dois centímetros. Que sonhos poderia ter? O pai havia deixado este mundo quando ainda era um bebê, e a iminência do perigo sobre uma mulher e uma criança em uma cabana no meio do nada sufocava os pensamentos da mãe. Este era mais um dos legados que agora passava para a filha.

O outono havia chegado, mas naquele dia a sua melancólica harmonia dera lugar a um soturno tempo de inverno, pressagiando o falecimento da senhora. No momento exato da morte não houve reação no olhar da filha. Compreendia o que era a morte, mas ainda não a sentia. O cadáver não podia permanecer na cama, e com muito esforço a moça o arrastou até a floresta. Fazia tanto frio, que Yarin temia fazer companhia para a morta. E então chegou, chegou o peso de se perder a única pessoa que conhecia, a única pessoa que amara e que a havia ensinado todo o pouco de que sabia. A escolha mais uma vez fez-se necessária: qual caminho percorrer para enterrar o corpo? Se escolhesse o primeiro, poderia visitá-la sempre que desejasse; mas dentro da mulher havia a garotinha cheia de medo, que não queria mais deparar-se com o cadáver da mãe e ser assombrada sempre que fosse colher frutos ou trazer água para casa.

A camada de neve já atingia o seu tornozelo, e até mesmo o primeiro caminho estava mal iluminado, quando começou a arrastar a mãe até as trevas. Não iria enterrá-la se quisesse sobreviver, então a intenção era deixá-la no gelo, sabendo que jamais tornaria àquela outra trilha. Por precaução, porém, quis arrastá-la até pouco menos que a metade do trajeto. Largou o corpo e virou-se, sem dizer adeus. Era impossível enxergar com clareza na quase absoluta escuridão, mas tratava-se de uma linha reta, e só precisara fazer meia volta e repetir os passos no sentido oposto. Após demorar três vezes mais do que o que levaria no outro trajeto, e sentindo que não aguentaria muito mais, avistou novamente a cabana. Caiu de joelhos no gelo, sentindo o desejo de se entregar e sem mais conseguir andar. Não, ainda havia chances. Arrastou-se pela neve, o vento arranhando, arranhando a sua pele. Ao avistar dois corvos, a sensação de desistência tornou a afogar os seus pensamentos, mas deixou-os de lado novamente. Arranhava, arranhava. Arrastava. Apagara.

Acordara. A neve havia derretido. Ainda fazia frio, mas um frio de outono. Yarin conseguiu se levantar e começou a andar lentamente, mas a passos largos, de volta à cabana. Parou novamente, quando notou que os corvos permaneciam no local, como se a estivessem observando por todo aquele tempo; fosse um dia, fosse uma semana. Não sabia o que pensar, e decidiu só ir direto para o lar, mesmo.

Ao entrar, viu-se em uma taverna e assustou-se imediatamente. Saiu. Analisou a cabana. Era exatamente aquela onde passara a vida. Por fim, optou por acreditar que alucinou após tanto tempo desacordada e abriu mais uma vez a porta. Ainda era uma taverna. Antes que pudesse tomar qualquer atitude, notou que o espaço interno era muito maior do que a cabana que via por fora - e portanto maior do que a sua casa. Não sabia com o que se preocupar mais: com uma taverna que por fora era exatamente como a sua casa ou com a insanidade de seu espaço não caber na construção em si.

O espaço estava quase vazio, não fosse por uma mulher trazendo uma bebida para um homem sentado à mesa do fundo. Havia seis mesas, quatro com três cadeiras e duas com duas cadeiras, uma ao fundo, ao lado de uma escadaria. O centro era iluminado por um lustre que continha dezesseis velas, enquanto os cantos recebiam as luzes mais fracas de tochas fixadas às paredes de pedra. Como poderiam ser de pedra se a cabana era pura madeira? Não havia nem como acreditar estar sonhando, sabia distinguir a diferença entre sonho e realidade, e também não duvidava de sua sanidade. Sentia medo, mas não tanto quanto pudesse esperar sentir em tal situação.

Chamou pela moça, que não lhe deu ouvidos. Insistiu e a situação repetiu-se, mas sentia que não estava sendo ignorada, era como se a sua presença não estivesse sendo sentida ali. Optou por sentar-se em uma das mesas mais próximas, no canto esquerdo da parede da porta de entrada. Não demorou para que levasse um susto, ao perceber que o sujeito sentado ao fundo possuía quatro olhos e quatro orelhas. Segurou o impulso de fugir imediatamente, sendo a sua curiosidade mais forte do que o medo. Além disso, fugir para onde? Havia ido e voltado pelo mesmo caminho, retornado à mesma cabana onde passara os poucos anos de vida; não enxergava em sua mente outra escolha, outro lugar onde pudesse estar.

Desde que Yarin sentou-se, o homem de olhos, sobrancelhas, orelhas e ouvidos duplicados já havia emborcado quatro jarras de bebida. Seus cabelos e barbas eram negros e espessos, e possuía uma argola em cada orelha. A moça de longos cabelos loiros havia acabado de esvaziar um barril ao encher novamente a jarra, quando a porta da frente foi aberta e um senhor entrou. Cabelos e barbas longos e brancos como a neve, o topo da cabeça coberto por um chapéu de abas largas, usava um cajado para apoiar-se. Possuía apenas um olho, mas não era um ciclope; na região onde deveria haver o olho esquerdo encontrava-se uma fenda vazia. Com o olho direito avistou o outro homem e foi em seu encontro. Cumprimentou a servente com um aceno de cabeça e sentou-se com o outro.

"Suponho que seja inútil perguntar há quanto tempo está aqui,  estou certo?", indagou, com um leve sorriso no rosto. O duplicado concordou, sério. "Onde estão todos os outros?".

"Nos dormitórios, no andar de cima. Cem vezes maior do que aqui, mas ouvi dizer que no início só existiam vinte e um quartos. Nós podemos optar por dormir pelo tempo que desejarmos, imagino que esteja levemente familiarizado com isso", respondeu ainda sério o outro, mas cordialmente. "Então, finalmente chegou a sua vez. Sempre tive alguma curiosidade com relação a este dia. Tantos já estão aqui, só restava você e os seus. Onde estão?".

"Decidi que eu deveria chegar primeiro, é minha responsabilidade. Logo o meu povo desembarcará".

"Então o andar de cima atingirá o seu espaço final".

"Sim. Desde que aquele filho do Criador desceu em Midgard já era certo que este dia chegaria. Lutamos bravamente. El Shaddai ironizou nossas profecias e meu filho foi o primeiro a morrer", lamentou o caolho.

"Meus pêsames", retornou com sinceridade, mas secamente, o outro. "Quem liderou as tropas contra vocês? Uriel?"

"Não, Abadon assumiu, desta vez. Creio que foi o general certo para a tarefa. Contra Uriel poderíamos ter resistido por mais tempo", o olho do senhor pareceu demonstrar, por um milésimo de segundo, esperança; para depois retornar à triste realidade.

"Então Ele encerrou com chave de ouro. Bem, este é o fim, imagino".

"Sim, desde que ascendemos ao poder com nossos respectivos súditos, sabíamos que era por pura condescendência da parte Dele. Mas fomos longe, e ele sabia disso. Uma grande parcela da população de Midgard cultuva as entidades que agora estão dormindo nesta estalagem ascosa; bem como a mim e aos meus".

"Não seja mal agradecido. Podíamos estar em situação muito mais ultrajante".

Wotan exaltou-se: "por que deveria agradecer pela minha situação? Eu era o rei dos Aesir, cultuado pelos melhores guerreiros daquele planeta", mas as últimas palavras saíram já quase sem voz. Permaneceu em silêncio por um momento, e prosseguiu: "estamos fadados a existir aqui pela eternidade". Apesar da intenção revoltada das palavras, havia resignação em sua pronúncia.

Marduk estava prestes a sugerir que Wotan entrasse em sono profundo, como era de costume nos seus tempos de reinado, mas desta vez por mais tempo. Contudo, o conselho jamais chegou a ser dado, pois Huginn e Muninn pousaram na janela para trazer as informações ao seu senhor, que levantou-se de prontidão e foi ao seu encontro. Após um momento de comunicação que só era perceptível aos três, o olho de Wotan virou em direção a Yarin, severo. Não havia dúvidas, a entidade havia sido informada sobre a sua presença na estalagem celestial. Marduk levantou-se e a servente assustou-se. Yarin levantou-se desesperadamente e correu em direção à porta, que não se abriu. Marduk forneceu uma adaga ao companheiro, enquanto a garota tentava abrir a porta a qualquer custo, chorando. O Aesir aproximou-se. Rasgou, rasgou.

Yarin acordou em sua cama, confusa. Finalmente acreditou que se tratava de algum sonho fora do comum, mas sentiu dor e notou os ferimentos, já em processo de cicatrização, como se já fizesse mais de uma semana. Claramente havia recebido cuidados. Ouviu passos e levantou-se apressadamente em direção à porta da cabana, quando um vulto estava prestes a fechá-la. Tudo o que conseguiu ver foi o rosto ossudo cinza e os cabelos escuros e imundos. Mas o olhar, aquele olhar, que olhar. Era como se todos os sentimentos possíveis estivessem naqueles olhos negros; mas os que mais se destacaram foram a tristeza e a empatia. A tristeza parecia inerente, mas a empatia parecia mais concentrada naquela situação. Tudo isto nos segundos que antecederam o fechamento da porta. Tão pouco tempo para uma memória que se fixaria nos pensamentos da mulher pelo resto de sua vida, bem como todo o contexto da taverna. A própria memória de sua mãe perduraria menos. Ela sabia que só estava viva porque o vulto permitiu, e isto podia significar que o seu poder fosse ainda maior do que o dos deuses. É claro que esses pensamentos e suposições desenvolveram-se ao longo de dias, semanas, anos. Tudo o que restou àquele momento era a subjetividade da sensação de olhar para ele.

Lucas Giesteira



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