Conto: Grendel


A aldeia vizinha ficava há pouco mais de seis quilômetros. Um sobrevivente trouxe a notícia de que fora massacrada por uma criatura monstruosa há cerca de uma hora. O pânico instalou-se tão prontamente a última palavra saída da boca do mensageiro terminou de ecoar pelo espaço ao redor. Uns começaram a fugir após pouquíssimos minutos, outros começaram a orar para que Deus as protegesse do demônio que insistia em testar a sua fé inabalável. A minha mãe decidiu ajudar o maior número de pessoas possível, antes que pudesse juntar os bens mais necessários e nos levasse para longe da fera. 

Eu era muito nova, mas não sei ao certo quantos anos tinha, até hoje desconheço a minha idade. Via tantos adultos, idosos e - é claro - outras crianças com medo; e só conseguia achar curioso que eu estivesse tão calma. Ao encontrar a minha avó, descobri que não me achava sozinha. Ela olhou para mim sabendo que seria nosso último contato, e naquele instante já pude perceber que algo valioso logo seria passado para mim. Perguntei o que não parecia óbvio, mas mesmo assim o era.

- Vó, a senhora não vem com a gente?

- Se eu for junto, atrasarei vocês duas. Vocês sabem que são responsáveis por mim e não me deixariam para trás durante a fuga. Mas se eu decidir que não sairei daqui, a responsabilidade é minha. Além disso, a morte já dá um passo em minha direção a cada dia, e me parece mais valoroso enfrentar uma criatura dessas do que morrer dormindo, sem dignidade.

- Você vai lutar com o monstro, vó? - Perguntei, assustada.

- Não desse jeito, minha criança - a velha não conseguiu conter o riso - alguém com o meu porte e a minha saúde estar de frente a uma fera como essa é um enfrentamento muito maior do que o que pensa. Essas criaturas não alimentam-se só de nossas carnes, mas do nosso medo. Não deveríamos dar o segundo gosto a elas. E há outro motivo... eu acredito que conheço a fera.

Não consegui responder por alguns instantes, não havia pensamentos organizados o suficiente para que se formasse alguma frase em minha mente. Como poderia aquela senhora ter algum contato prévio com um monstro que deixa tão poucos sobreviventes? Por fim  consegui dizer alguma coisa. Muito pouco, mas algo.

- Como?

- Ah, meu bebê, é uma longa história.

Minha mãe passou em frente, enquanto auxiliava na evacuação dos moradores, e ouviu essa parte da conversa. Prontamente entendendo o contexto, seu olhar foi de encontro ao meu, assustado; e de encontro ao da própria mãe, assentindo. A história havia sido passada a ela, que entendia a importância de ser passada para mim. É claro que ela mesma podia ter me contado, no futuro, mas não seria a mesma coisa. Quem viveu aquilo foi a minha avó, e só ela poderia repassar com a mesma fidelidade. Apesar de sua idade, havia total lucidez em seus pensamentos, e determinação frente à situação que se passava. É claro que havia pressa, mas a minha mãe ainda estava liderando a fuga. A verdade é que havia poucos homens em nossa aldeia, e em sua maioria eram idosos. Muitos perderam as vidas em combates com outras aldeias, deixando as responsabilidades para suas viúvas. A minha mãe não encontrou grandes dificuldades, criada do jeito que foi pela minha avó. Algo em mim dizia que a história que me seria passada traria alguns esclarecimentos a esse respeito.

No momento eu não tinha consciência disso, mas pouco depois entendi que após aquele dia o encargo de manter a história viva cabia a mim. Sei que as palavras não serão reproduzidas na íntegra, e receio poder me esquecer de alguns detalhes, uma vez que me encontro em idade parecida com a que ela tinha, e infelizmente não sou tão forte e lúcida como ela foi, apesar de também não estar caducando. 

Só tive dois filhos ao longo da vida, uma que morreu ainda bebê e outro que morreu já como homem, mas não através da "glória" da batalha, e sim da peste. Isso não inibe o meu dever de passar a história adiante, e deixo este relato para quem estiver disposto a acreditar que os velhos deuses existam.

Após uma experiência estranha, em que entrou em uma taverna de aparência comum, mas que existia dentro do local onde deveria ser a sua casa, minha avó foi esfaqueada pelo deus de que até hoje tanto se fala, Odin. Havia outro, desconhecido por ela até anos depois, de nome Marduk. É um deus antigo da Mesopotâmia, conhecido por ter derrotado Tiamat, o caos primordial. O problema é que estavam lado a lado, o deus babilônico e o nórdico, ambos conhecidos pela criação dos homens, assim como o nosso Deus cristão. Esse é o grande mistério por trás das religiões, não? Qual - ou quais - o deus verdadeiro? Cada um traz para si o crédito de ter criado todas as coisas, inclusive a nossa espécie. Fomos criados a partir do sangue do marido da serpente? Talvez a partir de dois troncos esculpidos, ou da argila amaldiçoada por uma caixa. Não culpo os diversos povos por se maltratarem em função dessas crenças, mas minha avó me fez acreditar que realmente viemos de Adão e Eva.

Após acordar viva, viu um vulto saindo de sua casa, já prestes a fechar a porta, e imediatamente entendeu que foi salva do ferimento causado pela adaga de Marduk. Logo de início ela já havia compreendido tratar-se de Odin, e demorou meses para reconhecer o outro, mas o problema estava no terceiro. Não conseguiu vê-lo direito pelo vão da porta e o pouco que viu não batia com nenhuma descrição de um deus característico, mas se sabia de algo, era a sensação diferente que havia experimentado naqueles poucos segundos.

Os anos passaram naturalmente e minha avó havia saído da cabana onde cresceu. Casou-se com um camponês, não por amor, mas para sentir-se protegida; e nasceu minha mãe, Helena. Apesar do tempo, não havia se esquecido das figuras ou da taverna, mas também não os tinha em  sua cabeça com frequência. Existia um espaço em sua mente sempre pronto para revisitar o acontecido, antes de deitar-se. 

Minha mãe já tinha catorze anos quando um nobre repugnante do feudo em que viviam decidiu pedir a sua mão em casamento. Nem ela e nem a sua mãe aceitaram a proposta, mas o meu avô sim, e assim minha mãe foi levada. Os pais brigaram entre si, minha avó acabou sendo agredida e nada pode fazer. Semanas se passaram e não recebeu notícias da filha, a angústia era tudo o que sentia; e só conseguia trabalhar na terra porque a vida dependia disso. O não amor que havia entre ela e o marido transformou-se em asco. 

Em dado momento desse contexto ela teve um sonho estranho, em que não possuía corpo, e vagava por sua casa. Viu uma cesta cheia de frutas e decidiu comer uma maçã. Sem mãos para pegá-la, o instinto era abocanhá-la, e conseguiu. Então percebeu que havia um corpo, mas sem mãos, e tomou consciência de que era uma serpente. Acordou sem entender nada e olhou pela janela. Que susto, alguém a vigiava, mas não conseguia enxergar suas feições no escuro penetrante. Então decidiu fazer algo que para mim confessou ter sido a maior impulsividade que já tivera, pela qual jamais se arrependera. Saiu de casa e foi de encontro ao vulto, que começou a andar na direção oposta, a passos lentos. Naquele momento não havia dúvidas de que o certo era segui-lo, e só enquanto o fazia lembrou-se do seu salvador da juventude.

Ao adentrar na escuridão, recordou-se do sinistro caminho que percorrera para abandonar o corpo de sua falecida mãe, no dia em que conhecera o vulto que agora perseguia; e foi exatamente nela em que o perdeu de vista. Ajoelhou-se e, com a respiração ofegante, sentiu vontade de gritar por ele, mas sabia que as consequências que viriam a seguir eram tudo o que não precisava naquele momento de sua vida. Acalmou respiração e mente, e avistou um lago à sua frente. Não havia como não enxergá-lo, a água emanava um brilho azul em meio ao negrume de todo o resto. Dados todos os acontecimentos precedentes, minha avó não conseguiu sentir medo ou estupefação, apenas curiosidade. Olhou para os céus e sentiu que as estrelas eram cúmplices do que estava por acontecer. 

De cabeça baixa e olhos cerrados, aguçou os ouvidos para o ambiente místico que a cercava. Não havia som de pássaros, insetos ou quaisquer outros animais. Estava certa, era uma dimensão alternativa, assim como a estalagem em que os deuses antigos repousavam. O silêncio permanecia, mas a intuição lhe disse que o vulto aproximava-se. Abriu os olhos e ele estava sentado à sua frente. Parecia alguém que já fora muito bonito, mas algo o corrompera. Sua pele não era humana, pálida de forma que nunca vira nem em cadáveres, e acinzentada. A pele era negra em volta dos olhos negros, e os cabelos - também negros - muito compridos e sujos. As unhas eram crescidas e mal cuidadas, curvas como se fossem de um felino. Vestia trapos piores que os da maioria dos camponeses que ali viviam.

Após não só os anos de mistério, mas também toda a situação da perseguição, esperava mais longos momentos enfastiantes, e foi pega genuinamente de surpresa quando a figura pronunciou as primeiras palavras.

- Boa noite, o meu nome é Lúcifer.

Silêncio. Enquanto minha avó só conseguia absorver a informação, o anjo permanecia sentado, imóvel, os olhos calmos como nunca.

- Trouxe a senhorita até aqui - disse já notando o olhar de correção dela - porque não posso mais ajudá-la na surdina como fiz no passado.

- Então foi você quem salvou a minha vida naquele dia? - As palavras conseguiram sair de sua boca.

- Fui. E a ironia é que para você aquilo foi um dia, para eles simplesmente aconteceu no vazio.

- Foi por isso que Odin disse para Marduk que não havia porque perguntar há quanto tempo ele estava na taverna? - Recordou-se minha avó.

- Eu a admiro demais, é uma pessoa muito inteligente, apesar de viver uma vida em que isso não seja muito necessário. Sinto orgulho de você.

Entendendo que o ato de sentir orgulho implica em alguma intimidade, em existir alguma relação entre a pessoa que gerou orgulho e aquela que o sentiu; minha avó perguntou o seu motivo de estar ali e de ter salvo a vida dela anteriormente.

- Você é minha filha.

Ela se ergueu, os olhos arregalados e uma expressão de temor em seu rosto; não pela ideia de ser filha daquela figura sombria, mas porque seu pai havia falecido há muito. Ela tinha conhecimento de quem era o seu progenitor, e não era ele. Sabendo o que se passava na mente da mulher, Lúcifer, também erguido, acrescentou:

- Não no sentido estrito. Você é minha descendente. Finquei minhas raízes nas terras deste mundo há milênios, ao gerar um filho com uma humana. Os primeiros humanos viviam por muito mais tempo, e tinham filhos o suficiente para povoar este planeta. Gerações e gerações se passaram, e aqui está você.

- "Uma humana". Então você realmente é a entidade pela qual o seu nome é conhecido? O anjo que se voltou contra Deus?

- Sim...

Antes que pudesse continuar, foi cortado por ela.

- Se isto for verdade, então sou amaldiçoada!

- Calada.

Minha avó segurou as palavras de revolta. Filha do diabo. Estava fadada a viver por toda a eternidade queimando no fogo do inferno.

- Não há mais maldição alguma para os meus filhos. O meu primeiro filho foi metade humano, e toda essa parte humana foi aumentando ao longo das gerações. No começo realmente foi difícil, mas o sangue foi se misturando. Atualmente só há um filho meu amaldiçoado pela raiva. O seu nome é conhecido pelas canções. Todos acreditam estar morto há muito tempo, pelas mãos de um nobre guerreiro, equiparado a Aquiles.

- Quem?

- O guerreiro chamava-se Beowulf, e o monstro que todos acham ter morrido por suas mãos é meu filho Grendel.

- Eu conheço essa história... o grande guerreiro do norte. Como Grendel sobreviveu? 

- Eu interferi, salvando-o, assim como a salvei. - Lúcifer disse calmamente, mas sabendo o que estava por vir.

- Ele é um monstro!

- Ele é meu filho, assim como você. Sei que a vida dele significa a morte de muitos outros, mas tenho a responsabilidade por ele. Beowulf matou a sua mãe, e eu só permiti porque ela já havia vivido por muito tempo. Um dia deixarei Grendel partir, mas seu momento ainda não havia chegado, e ninguém mais o ameaçou desde então.

Silêncio novamente. Minha avó havia desistido de questionar, e realmente era justo que Lúcifer o protegesse como bem quisesse. Apesar de sua natureza diferente, seria hipocrisia bradar contra uma proteção que ela mesma havia recebido pelo mesmo motivo.

- Este não é o único motivo de estarmos aqui. Realmente desejava que você soubesse de tudo isto. Como disse, sinto muito orgulho de você e quero confiar este conhecimento à sua pessoa. No entanto, o motivo de estarmos aqui "hoje", e não em outro "dia", é a sua filha. Ela é minha filha, assim como você, mas não costumo interferir explicitamente em duas gerações seguidas e diretas. Estou unindo o útil ao agradável, aqui. 

- Vai tirar a minha filha das mãos dele?

- Haverá um incêndio, e todos estarão em choque, tentando não só salvar as próprias vidas, mas os bens mais valiosos. Haverá um cavalo que a levará ao local do incêndio, e sua filha subirá nele com você. Não se preocupe com as reações, é o cavalo de terra mais veloz do mundo. Não pergunte. - Interrompeu a indagação dela -  Ele as levará para bem longe, em um local seguro, onde reconstruirão suas vidas.

Yarin estava prestes a perguntar sobre o marido, quando lembrou-se de ter sido chamada de "senhorita". Optou por ficar calada.

- É o cavalo de Odin?

- Sim, fiz um trato com ele. Nosso Pai tem conhecimento disso, mas uma vez banido, sou quase intocável. Quanto a vocês, meus filhos, são humanos, aí procede a lei do livre arbítrio. Posso contar contigo?

Antes de assentir, minha avó remexeu em sua mente tudo o que pudesse querer saber. Por fim concordou, e emendou a pergunta:

- Como podem existir tantos deuses diferentes?

Lúcifer sorriu de forma leve, sincera mas com aparência mecânica.

- Existe um motivo para a palavra "deus" que os designa se dar com a primeira letra em forma minúscula. Só existe um Deus, o criador de todas as coisas, mas a onisciência só existe quando Ele a deseja, é um fardo muito pesado, por vezes quase uma tortura. E em todo o tempo em que ela não existe, a criação toma formas inesperadas, e os mais diversos seres ganham vida. Os deuses são entidades, assim como eu. A diferença é que o meu nascimento foi vontade Dele. Os deuses não criaram nada, mas inventaram diversas histórias para dominar os povos que escolheram manipular. E se as manipulações conseguissem convencer os outros povos, poderiam ganhar ainda mais força, pois a fé exerce influência sobre o poder de seres poderosos. Agora vá, filha.

Yarin assentiu e deu as costas, quando subitamente mudou de ideia. Havia se esquecido de perguntar algo importantíssimo.

- Por que voltou-se contra o seu Pai? Não era melhor estar nas graças Dele, tendo tudo?

Lúcifer não se irritou com o questionamento, apenas respondeu:

- Eu sei que você escolheu casar-se por proteção, sei que, por maior que seja o seu mérito, não há como uma mulher sobreviver sozinha por muito tempo, neste mundo. Mas veja a sua filha, casada à força com um desconhecido, repentinamente. Agora imagine que, apesar disso, ele desse tudo para ela, inclusive carinho. Isso por si só a faria amá-lo, a faria ser feliz? Isso a faria esquecer que não teve escolha alguma?

Lágrimas começaram a escorrer do rosto dela, como se a comparação fizesse a dor ser transferida de um para outro. Assentiu novamente, com dificuldade, e deu as costas uma vez mais. Achou que veria a mesma paisagem que a cercava, mas havia retornado à própria dimensão, e seguiu em direção ao seu lar. Ao entrar, não encontrou problemas, o marido roncava como de costume.

No dia seguinte todos ficaram sabendo de um incêndio próximo, que ainda acontecia. Em meio às tumultuosas conversas entrecortadas, ela viu um cavalo negro de oito patas, ao longe. Sem temer que a vissem, correu em sua direção e montou rapidamente nele. Ocorreu tudo como planejado, ao chegar a uma distância visível do local determinado a minha mãe estava do lado de fora da outrora belíssima casa ornamentada da aristocracia. Gritou pela filha que, sem saber, estava sob efeito de forte intuição e começou a correr em direção ao cavalo. Assim que as duas encontraram-se montadas nele, Sleipnir utilizou-se de toda a sua força e velocidade para sair do campo de visão de todos os presentes.

Quando a minha avó terminou de contar toda essa história, a situação já encontrava-se no ápice do desespero. Não havia mais tempo a perder, precisávamos sair da aldeia se quiséssemos sobreviver. Minha mãe entrou e se despediu de sua mãe, e por fim me despedi também. Eu não sei o que aconteceu depois disso, mas gosto de imaginar que minha doce avó teve algo a dizer ao seu parente, ao nosso parente. Os ataques às vilas foram atribuídos a diversas criaturas conhecidas, reais ou fictícias, mas o nome Grendel não foi citado. Nos anos que se passaram houve outros ataques (sempre determinada quantidade seguidamente em dadas épocas, após anos sem nada), e o último de que me recordo foi há oito anos, e acho que a maioria (se não todos) foram obra dele. Sempre admirei a minha avó, mas após o seu último dia, comecei a enxergá-la com a maior admiração que já senti em toda a vida. Queria saber onde ela está agora, se não há maldição.

Lucas Giesteira

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