Conto: O monarca de lugar nenhum



O vulto caminhava em moderada velocidade, sob uma leve camada de fumaça que aos poucos ia embora, em sentido oposto. O trajeto parecia carente de qualquer outra forma de vida inteligente. Era um rastro de floresta, ainda com vida vegetal e animal. A fumaça que perpassava o caminho parecia indicar uma queimada mais adiante. O vulto não parecia temeroso, talvez por haver esperado algo pior.

Não há motivos para contextualizar a localidade, o nome da floresta. Tudo o que havia naquela época eram florestas e rios em abundância, repletos de vida animal. O mundo era um pedaço de terra cercado por água. Por onde o nosso indivíduo caminhava cada vez mais devagar – talvez por cautela, talvez para observar o que se passava ao redor – os animais fugiam em sentido igual ao da fumaça, mas em maior velocidade. As plantas estavam ou enfraquecidas, ou mortas. Naquela época as formas de vida eram muito mais frágeis, tinham muito o que aprender sobre quaisquer perigos que não fizessem parte da própria rotina da cadeia alimentar local.

Temendo assustar aquele a quem veio visitar, removeu a manta que o cobria, revelando os traços humanos, de uma beleza que nenhum humano viria a ter. Os seus longos cabelos negros cobriam as costas por completo, como uma cortina. A sua pele é quase indescritível; nem branca, nem negra. É como se apenas uma fina camada estivesse neste mundo, como se o indivíduo estivesse amarrado a uma corda em outra realidade, para que fosse puxada quando o seu propósito por aqui houvesse acabado. Os olhos, ainda nessa fina camada, pareciam púrpuros.

O seu olhar parecia muito claro, mais revelador do que a forma de andar ou para onde olhava. Eram olhos de quem havia sofrido muito, mas já superado a dor em grande medida. Se estava lá, porém, ainda restava algo a acertar.

Do outro lado daquela região estava ele, sentado em seu modesto trono, aguardando a chegada de um velho amigo. Uma quase eternidade de quase arrependimentos pairava sobre seus ombros. A imensa beleza de outrora fora-se há muito. Sua pele agora era pálida de forma acinzentada. Os longos cabelos negros cada dia mais oleosos, se é que isso possa ser possível.

Lúcifer errou ao travar uma guerra que não podia vencer. O seu esforço foi tanto que conseguiu ferir gravemente o Pai, fazendo-o morrer posteriormente. Prejudicar um, porém, não é sinônimo de beneficiar-se. Apenas a terceira parte da população celestial aliou-se à sua causa, como poderia vencer? Nem sempre números vencem guerras, mas a força dos anjos não difere tanto de um para outro, e estratégia nenhuma derrotaria Deus.

Como é de conhecimento do vulto de pele translúcida, as Guerras Celestiais tiveram fim com o exílio do anjo caído e seu exército. O que não se sabe é que Lúcifer tirou muito de seu Pai ao fim do conflito. Após o fim da guerra, Ele decidiu humilhar mais ainda o seu antigo filho favorito, criando um último mundo, mas desta vez não possuía a força necessária. Assim, os anjos da Primeira Tríade criaram a Terra, através da melodia indescritível de seu canto.

Ora, toda a rebelião do braço direito de Deus deveu-se a isso. Lúcifer abominava a Criação. Acreditava ser a vida o grande erro de seu Pai, fruto de uma enorme arrogância. Qual o propósito da vida? É claro, encontrar a felicidade e aprender com os erros; mas se não existisse vida nada disso seria sequer uma questão. O grande problema de se criar um ser quase tão imponente e inteligente quanto si mesmo é o surgimento da independência de ideias. Quase infindáveis séculos depois não seria novidade para a humanidade que uma criação pode viver à parte de seu criador, e essa história existe muitíssimo antes de nossos primeiros pensamentos. Se meros seres mortais – julgando-se muito mais inteligentes do que de fato são – afastam-se do que prega a doutrina do criador; por que a mais bela, sábia e poderosa de suas criações não pode fazer o mesmo? Quando um filho trilha um caminho diferente do de seu pai, é visto por ele como um ingrato, um egoísta. Se um filho deve viver até o fim de suas energias trilhando o caminho de outro, em uma vida que nem sequer pediu para ter, a criação é de fato o maior erro de Deus.

O nosso mundo surgiu da vingança de nosso Pai contra o filho que tanto o magoara, e não de Seu amor por nós. Percebera, então, que esta humanidade nascera condenada a tão pouco amor. Tentara nos guiar através dos Dez Mandamentos enviados a Moisés, mas nenhum guia simplificado é capaz de mudar tantas vidas. Sua última tentativa foi repetir a criação de um filho perfeito, há dois mil anos, que servisse inicialmente como braço direito, e que depois tomasse o seu lugar de direito na Corte Celestial.

O primogênito, então, seria esquecido de vez. Passaria a viver o resto de sua quase vida em um reino frio e majoritariamente escuro, ao contrário das histórias normalmente contadas sobre o fogo do Inferno. Naquele dia e naquela floresta, contudo, havia fogo.

O outro sujeito chegou à deveras aquecida região. Lúcifer, ainda sentado no trono de madeira, ergueu o olhar e viu com pesar o rosto do anjo Uriel. Não eram necessárias palavras para dizer o que estava nas feições do anjo de luz, aquela seria a última vez dos dois frente a frente. O fato definitivamente incomodava muito mais ao anjo caído, abandonado a viver com os outros abandonados. Ali, porém, só havia dois seres. Nenhum outro anjo de luz, nenhum outro anjo corrompido, nenhum jovem animal do novo mundo, nenhuma árvore com vida. O curto silêncio pareceu durar uma eternidade, assim como tudo passava para o monarca de lugar nenhum. O silêncio logo foi quebrado.

“Eu vim demonstrar meus últimos sinais de amizade, velho amigo”.

Silêncio. Uriel aguardou mais um pouco.

“Apenas gostaria de uma palavra tua, antes de retornar. Apesar de todo o ressentimento, – que não nego, ainda existe da mesma forma de outrora – ainda sinto amor e compaixão por ti. Os céus recuperaram todo o vigor e a glória, mas para mim ainda há muito cinza ofuscando o dourado de nosso reino. Sinto muita raiva de ti, mas não encontro consolo em teu exílio, e muito menos em tua dor. Vim aqui quase como uma criança amedrontada face ao perigo próximo, que puxa a mão da mãe, pedindo por auxílio em meio à morte iminente de ambos. Agora percebo que estar aqui contigo de nada adiantará. Todo o vazio que sinto voltará comigo para o reino do Pai”.

A menção despertou as palavras adormecidas na boca seca do outro.

“Por que o reino é de nosso pai, e não nosso?”.

“Ele o criou, meu irmão. Ele criou tudo”.

“Não, não este mundo”, interrompeu Lúcifer. “Eu e meu exército o enfraquecemos. Os senhores, sob o comando de Miguel, criaram este mundo. Nosso pai precisa de nossa ajuda. Por que acha que fomos criados? Nenhum ser é tão grandioso e independente quanto afirma ser. Até o grande onipotente sente. Sente solidão, raiva, alegria, amor, ódio, vaidade. Esses foram alguns dos ingredientes chave para o nosso nascimento, e posteriormente para o nascimento de todos os seres de todos os mundos. Isso porque nenhum poder é útil ou prazeroso se não utilizado. Nenhuma espada é útil se nunca empunhada, irmão. O reino é nosso tanto quanto é dele. Se não fosse por nós, o grandessíssimo já haveria enlouquecido em sua vastidão”.

“Qual o teu ponto, meu amargo irmão?”

As baixas chamas ganharam novo vigor, acompanhando a nova e crescente raiva de seu pequeno criador. O fogo ganhou cor azulada e Uriel sentiu medo. O mesmo que sentira quando o irmão rebelou-se e declarou guerra. Desta vez não havia exércitos, apenas os dois. Não. Havia fogo, quase como um ser à parte, provido de vida. O ódio era o motor.

Lúcifer nada diria em resposta, mas as chamas fizeram a sua parte. Para um ser tão humilhado, desprovido de toda a grandeza que outrora tivera como filho favorito, beirava a ser horrivelmente encantadora toda a grandiloquência que demonstrava na terra de ninguém. Não, também havia convicção. O ódio sem convicção seria apenas caos sem rumo.

O anjo iluminado havia se esquecido que não poderia ser ferido, estando ali apenas em fragmentos, amarrado ao seu verdadeiro lar e sob supervisão do Pai. O fogo tomou proporções muito elevadas em tão pouco tempo, separando os dois filhos. Uriel foi trazido de volta contra a própria vontade, deixando o irmão em meio à sua resposta silenciosa.

Não havia mais cabelos oleosos. Não havia mais cinza. O anjo tornou-se um acúmulo de pele contorcida pelo próprio fogo. Não havia dor. Não naquele momento. O que seria aquele momento, em meio a uma eternidade de sofrimentos? Não, não havia arrependimento. Estava agora muito mais certo do que antes. Uriel sabia disso, pois agora havia dúvida em seus pensamentos. O Pai não havia sequer dado escolha para que ficasse mais um pouco com o irmão. Havia dúvida, mas nenhuma atitude viria em resposta. Só há impotência face ao eterno.

Lucas Giesteira

Comentários

  1. Bravo ! Muy interesante,te mantiene en lectura hasta el final
    Bien logrado :) ganas para crear algunas viñetas

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