A fuga do meu eu



Alguma vez, em meio à correria que preenche cada dia (de cada mês e de cada ano) de nossas vidas, nos raros momentos de “respiro”, você se perguntou o que fazer com o tempo livre? Por “correria” não me refiro apenas ao trabalho ou ao estudo, mas igualmente aos lazeres. Quando não nos ocupamos com nossas obrigações, logo procuramos estar com alguém. Se não estamos com alguém, por sua vez, procuramos algo para assistir ou para ler, ou praticamos algum esporte. O lazer acaba fazendo parte da correria, porque nós mesmos o colocamos nesse lugar. Nossas gerações, mais do que as de séculos anteriores, cresceram acostumadas a criar e buscar ocupações que nos impeçam de pensar em nós mesmos de forma menos superficial. A correria que se atribuiria apenas às “obrigações” estende-se também ao pão e circo.

É de comum conhecimento que a expressão “pão e circo” nasceu da Roma antiga, quando os imperadores controlavam a plebe através da distração do pão e dos espetáculos no coliseu. O conceito transcende a sua época de nascimento de forma a permanecer aplicável aos dias de hoje. É muito comum, por exemplo, atribuir essa ideia ao futebol, que distrai as massas dos reais problemas do país. Seu significado, porém, pode ser estendido aos lazeres como um todo. Qualquer um que pense no lazer como uma diversão em si mesma, está se enganando, uma vez que a sua função é a de ocupar o tempo quando não estamos cumprindo nossos deveres. Evidentemente que (pelo próprio conceito de lazer) essa ocupação se dá de forma boa e divertida, mas não por isso deixa de ser um preenchimento da lacuna criada pelo momento de ócio.

Durante a semana, quando encerramos nossas atividades, buscamos sair com outras pessoas, praticar academia, ou simplesmente colocar as séries em dia. Nos finais de semana isso é “oficialmente” ampliado. Qualquer um pode ir para o “happy hour” numa quarta-feira, mas a sexta-feira é o dia em que isso costuma se tornar uma lei. Os sábados à noite devem obrigatoriamente ser aproveitados da forma mais “descolada” possível. Quando você já adora a série a ser colocada em dia, ou gosta muito da(s) pessoa(s) com quem irá sair, os motivos para se ocupar o tempo são mais honestos. Quantas vezes, porém, em determinada ocasião, não havia ninguém interessante disponível, ou as suas séries e livros favoritos já haviam sido finalizados, e você simplesmente “procurou” algo para fazer? Mesmo que, em último caso, tenha optado por “não fazer nada”,  a tendência é abrir o Instagram, Facebook ou Twitter.

Não há mais tempo para pensar em si mesmo, para absorver o que está acontecendo, sentir a brisa que bate em seu rosto durante a viagem nessa estrada que é a vida. É nesse sentido que o lazer se torna pão e circo. É muito diferente de conhecer alguém legal por acidente, ou de estar passando pela sala enquanto alguém está assistindo a algum programa e você acaba se interessando. As pessoas sentem-se obrigadas a estarem praticando alguma coisa, sejam umas rodadas no bar com amigos, seja até mesmo sexo. Todo tipo de lazer deixou de ser algo que acontece com alguma naturalidade, passou a ser uma obrigação tão forte quanto o estudo ou o trabalho. Pode-se dizer que (grosso modo, evidentemente) o ritmo das vidas contemporâneas se divide, sobretudo, em trabalho e pão e circo. Até mesmo o que deveria ser algo ainda mais bonito e natural, como apaixonar-se (e talvez constituir algo, como casamento e família), para muitos é só uma obrigação a ser cumprida, uma meta de vida para sentir que não é uma pessoa inútil. Apesar de o trabalho ocupar nossas mentes de forma igual, ao menos é dele que tiramos o nosso sustento básico. Contudo, há uma diferença entre quando essa ocupação se dá de forma consciente e quando se dá de forma "bitolada", assim como é enorme a diferença entre a função primária/tradicional do trabalho e essa nova.

O objetivo aqui não é criticar o fato em si, pois por si mesmo não pareceria algo bom ou ruim, mas apenas algo. O problema está no motivo implícito por trás. As pessoas praticamente temem parar tudo e pensar e/ou sentir o que está para ser pensado ou sentido; e muitas vezes, quando o fazem, sentem-se mal, ficam ansiosas, depressivas. Manter-se o tempo todo ocupado não é só um fato, mas uma consequência de um problema maior.

Aqui permito-me citar a reflexão de Slawomir Mrozek (a quem tive acesso através do livro A Cultura no Mundo Líquido Moderno, de Zygmunt Bauman): “[...] colocávamos a culpa de nossa infelicidade no gerente do momento – Deus. Concordávamos em que ele conduzia mal os negócios. Nós o demitimos e nos nomeamos gerentes”. O problema reside no fato de que também não fomos bons gerentes. Quando nossas esperanças e metas de vida residem no Paraíso cristão, ou no Valhalla (ou em qualquer crença que transcenda a nossa existência), só descobriremos se é verdade após a morte. Se for mentira, nem sequer descobriremos, pois estaremos mortos. Quando a responsabilidade pela nossa felicidade é inteiramente nossa, precisamos buscá-la nesta vida. O perigo é que isso, por definição, é limitado. As metas precisam ser constantemente fabricadas e renovadas. Se você tem 17 anos e o seu sonho é casar-se, e isso é conquistado aos seus 26 anos, nota-se o vazio. A ideia de atingir o seu grande objetivo ainda no auge da vida pode aparentar ser algo incrível, mas mostra-se desesperador, uma vez que terminamos como cachorros que correm atrás da bola e depois não sabem o que fazer. Além disso há o perigo de a sua "utopia" não mostrar-se tão luminosa como nas aspirações. Se o seu sonho é ser médico e salvar vidas, perceberá que muitas vezes não há um significado em si em salvar vidas. Existem pessoas que não querem ser salvas, assim como pessoas que o querem, mas que não farão nenhum “bom uso” de sua vida. Se você trabalha com entretenimento, poderá eventualmente perceber que a sua grande função é distrair as pessoas de si mesmas. Se você é um sociólogo, perceberá que os frutos de seu estudo muitas vezes tenderão mais a ocupar um espaço na prateleira da biblioteca da universidade do que de fato a mudar a sociedade. De qualquer maneira, precisamos continuar vivendo a cada dia, não?

Tudo é uma troca. Para comprar um produto almejado, terá de abrir mão de uma quantia de dinheiro. Para ganharmos pleno controle sobre nossas vidas, tivemos de abrir mão da doce ignorância. A solução implicitamente ou explicitamente encontrada foi abrirmos mão novamente do controle de nossas vidas, de forma a nos mantermos (sempre que possível) mecanicamente ocupados, e muitas vezes o momento que mais tememos é quando deitamos nossas cabeças nos travesseiros e os pensamentos abrem lugar à força em nossas mentes.

Lucas Giesteira

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