Conto: O Anjo da Guarda




Aquele foi um dos momentos mais importantes desta minha irrelevante existência. Poucos meses após consertarmos um relacionamento conturbado, minha até então namorada decidiu acertar a vida em outro estado, onde viviam os seus pais. Por muito tempo inundava o seu imaginário a ideia de que o futuro lhe seria mais doce aqui, nesta metrópole irreverente, quando decidiu morar com o irmão mais velho. A vida lhe ensinou que às vezes o que tanto procuramos está mais próximo do que se poderia sonhar, e então ela se foi.

Até hoje me pergunto se a minha tarefa fora simplesmente ajudá-la a lidar com a perda da melhor amiga. Nos estágios finais do relacionamento entendi que não se tratava de amor, mas não queria acreditar que toda uma relação se deu por erro nosso, queria acreditar que existia um motivo maior que nos guiasse em tudo o que não era racional e objetivo. Lembro-me de quando a conheci, na chuva. O suicídio me atormentou como se um familiar o tivesse cometido, e no fim era um motivo tão comum.

Mas pensar que fui tão importante em sua pior fase não foi o suficiente para superar a perda. Estranho esse nosso orgulho, nem sequer amamos as pessoas e tanto sofremos por suas idas. Passei a ter problemas para dormir. Ficava pensando em como seria diferente o futuro. Poderia me animar tal verdade, mas só conseguia sentir medo da mudança. A rotina pode ser o pior veneno na vida de alguém, e ainda a abraçamos com tanto apego.

Quando o sono decidia vencer a batalha contra o consciente, perdia para o subconsciente. Passou a ser recorrente um sonho em que estava na velha praça, despedindo-me da suposta amada, sabendo que nunca mais a veria. O que seria pior? Dar adeus a alguém sabendo que jamais a verá novamente ou ser pego de surpresa? Esse talvez seja o maior problema da morte. A dor física pode ser sentida em vida, e o ato de apagar não deve ser diferente de um sono que nos invade. Não, o que tanto nos aflige na morte é o que deixamos inconcluído, e a despedida é uma delas.

O suicídio, porém, permite que a pessoa se despeça. Seja pessoalmente, seja através de uma carta que será lida postumamente. O que tanto incomodava a minha namorada era o fato de que a melhor amiga não lhe pediu socorro face aos infortúnios da vida, e muito menos lhe deu um adeus.

Quando partiu desta cidade a mágoa já estava superada. Dizia que viu (ou achou ter visto) um rapaz triste, e acreditava ser o seu anjo da guarda. Desde então encontrou dentro de si forças que não sabia ter. No começo eu não acreditava que o tal anjo fosse verdade, mas ficava feliz pela superação. Depois me lembrei do sonho que tive com meu pai, e do jovem vulto atrás dele. Pensei em perguntar para a já distante ex-namorada como o rapaz se parecia, mas desisti.

O que nunca havia entendido não só na amiga, mas em tantas outras pessoas com depressão, era como alguém pode ser triste possuindo tanto: boa saúde, vida financeira, família, amizades e relacionamentos. O que a afligia? Ou será que nem tudo era verdade?

Naquela noite o sono me inundou no instante em que deitei a cabeça sobre o travesseiro, e logo me vi mais uma vez na praça. Mas desta vez era diferente, não soava como um sonho, eu tinha a mesma consciência de quando estava acordado. E então vi o homem pálido, com profundas olheiras e longos cabelos negros. Já não era mais um rapaz, e os sinais de desgaste eram claros.

“Sabe, eu tenho profunda inveja de você”, disse serenamente, virando-se para mim. Eu obviamente não sabia os detalhes, mas conseguia supor que era por não possuir grandes tristezas na vida. Aparentemente lendo meus pensamentos, a figura assentiu.

“Tudo o que fiz, foi por confiar na minha opinião, e estar do lado de vocês. Não somos assim tão diferentes. Nasci com o maior privilégio que um filho poderia ter, mas nasci. E então vocês nasceram, e vi que era tudo um ato de vaidade. Fico verdadeiramente feliz por aqueles que nunca pensaram nisso, mas também decepcionado”. Fez uma pausa, um olhar quase catatônico, como se um brusco pensamento tivesse tomado conta de si. “A garota ficará bem, eventualmente”.

Antes de perguntar de qual delas se tratava, já havia entendido. Uma pontada de verdade pode ser cruel, e entendi porque me invejava. Sempre vivi dia após dia preocupado apenas com o tangível.

“Você não é um anjo da guarda, certo?”, pensei por fim.

A figura mais uma vez assentiu, com ternura nos olhos. Nunca havia ficado tão sem reação com um olhar.

Acordei e logo fui checar o horário. Nem um minuto sequer havia passado. Após aquele instante comecei a enxergar a vida de forma diferente, mas não foi o bastante para me abater, e acho que o anjo sabia disso; há alguma leveza dentro de mim que me permite ter esperança. Nunca mais me questionei o porquê de a garota ter partido, e também não procurei a minha ex para falar sobre isso.

Saber quem era a figura deveria ter me deixado com um medo imensurável, mas me senti ao lado de um igual. Espero que um dia encontre a longínqua paz interior.

É claro que essas respostas iniciaram incontáveis novas dúvidas, que talvez um dia (ou em nenhum dia, uma vez que o tempo só deve fazer sentido para a carne) sejam respondidas. E se formos realmente filhos de um prodigioso ato de vaidade?

Lucas Giesteira

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