Pantera Negra: Reflexo do Tempo
No dia 12 de abril deste ano o universo cinematográfico da Marvel completará exatos 10 anos, e reflexões que já se faziam até então ganham maior escopo. O quanto do cerne dos quadrinhos da Casa das Ideias já foi trazido para os cinemas? Essa pergunta pode ser encarada de diferentes maneiras. Pode ser vista sob a ótica do leitor de longa data que se sente bem ao finalmente ver O Vigia nas telonas em Guardiões da Galáxia Vol. 2, ou em perceber a citação ao Tribunal Vivo em Doutor Estranho. Pode também ser enxergada em relação aos amantes do cinema hollywoodiano: quantos atores e atrizes favoritos (como Michael Keaton, Natalie Portman, Forest Whitaker, Sylvester Stallone, e muitos outros) foram trazidos aos filmes da Marvel? A ótica que aqui nos interessa é: quão representativo tornou-se o MCU?
Representatividade aqui não consiste simplesmente em bater o cartão do politicamente correto e agradar aos comentadores das redes sociais, mas sim em preencher o imaginário de um público muito mais vasto. Quantas pessoas não viam em suas infâncias e juventudes as figuras de Luke Skywalker e da Princesa Leia como símbolos a serem seguidos? Quantos não queriam brinquedos e materiais escolares do Homem-Aranha? A questão é: por que a quase totalidade desses ícones são homens brancos? Partindo dos exemplos já citados, George Lucas já havia nos presenteado com uma personagem feminina forte em 1977, mas exceções não podem destronar regras. Não há problema real em uma criança do Harlem gostar do Homem-Aranha, ou em uma jovem se inspirar em Luke Skywalker, o problema em si é que todos merecem poder escolher. Quando esses personagens são as únicas ou quase únicas opções, a escolha é meramente feita por falta de opção.
Filmes de super-heróis podem não ser normalmente considerados em premiações como o Oscar, podem não participar de festivais como o de Cannes; mas são o gênero mais popular do cinema atualmente. Neste mês de fevereiro é evidente que um filme como Pantera Negra será muito mais assistido do que A Forma da Água (mesmo que o segundo possua popularidade multiplicada por estar concorrendo ao Oscar de melhor filme). Como o velho tio Ben diria, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Ora, os filmes da Marvel apresentam produções que variam desde comédia espacial e filme de assalto até o thriller ao estilo anos 70 que é O Soldado Invernal. A chamada “fórmula Marvel” pode perpassar todas as obras, mas os diferentes estilos são inegáveis. Até então, contudo, ocorria de fato muito mais uma representatividade de subgêneros do Cinema do que de pessoas. Em 2017 o estúdio rival nos trouxe um filme protagonizado por uma super-heroína forte (chegando antes da Capitã Marvel), e agora temos o filme do rei T'Challa. Em ambos os casos foi importante o fato de os dois personagens haverem sido introduzidos em Batman v Superman e Guerra Civil, respectivamente. Os seus filmes solo já estavam agendados, mas o sucesso alcançado pelos dois em cada produção provavelmente deu aos estúdios mais coragem para fornecer liberdade criativa aos diretores Patty Jenkins e Ryan Coogler.
Um filme representativo, porém, de nada adianta se não for bom e se os seus personagens não forem cativantes o bastante, e aqui tanto a escolha quanto a liberdade dada a Coogler é significativa. Alçado ao Cinema através de Fruitvale Station e reconhecido pelo mainstream por Creed, a expectativa por seu trabalho em Pantera Negra não poderia deixar de ser de altíssimo nível; e não se pode culpar aqueles que acreditavam que esta poderia ser a sua primeira oportunidade de errar (o que ocorre muito no gênero). A verdade é que o único erro de Pantera Negra são as cenas focadas no CGI, quando percebemos que o diretor se perde (afinal, nenhum de seus filmes anteriores lidou com computação gráfica). Pontuado isto, trata-se de um dos melhores filmes da Marvel e um marco não apenas para o gênero Super-Herói, não só para os blockbusters, mas para o Cinema.
O elenco do filme (Chadwick Boseman, Michael B. Jordan, Forest Whitaker, John Kani, Sterling K. Brown, Letitia Wright, Andy Serkis, Martin Freeman, Lupita Nyong'o, Danai Gurira, Winston Duke, Daniel Kaluuya e Angela Bassett) é o mais impressionante da Marvel. Cada personagem possui a sua importância muito bem definida (como Rian Johnson deveria ter feito em Os Últimos Jedi), nenhum ator está na produção apenas para enfeitar pôsteres ou entrevistas com a imprensa. Apesar de T'Challa ser o protagonista, o filme precisou nos introduzir todo o conceito de Wakanda e, com ela, o seu povo. Pode-se dizer que o que foi feito com o povo wakandiano neste filme escancara o que deveria ter sido feito com os asgardianos desde o primeiro Thor, em 2011. Se até mesmo no excelente Thor – Ragnarok nos falta uma noção de quem é o povo que o protagonista tanto busca defender, o presente filme obtém maior sucesso nesta tarefa. Se um dos poucos sucessos com relação a Asgard e ao seu povo é a beleza estética, o mesmo realiza-se em Pantera Negra, com uma nação rica em detalhes e com um povo possuidor de figurinos dignos de deixar Jared Leto boquiaberto. O novo uniforme de T'Challa também é belíssimo (diferencia-se do anterior por não precisar ser vestido e por “brilhar” arroxeadamente em função dos impactos). Soma-se ao rico figurino os detalhes culturais das tribos, como os cumprimentos e os movimentos presentes nos rituais de coroação/desafio ao novo rei.
O injustiçado Andy Serkis (que há muito deveria ao menos ser nomeado ao Oscar, pelas atuações de Gollum e Cesar; e que deveria ter recebido muito mais espaço no último Star Wars) dá vida a Ulysses Klaue, um personagem que se interpretado por outra pessoa dificilmente seria interessante (pelo que o próprio personagem é nos quadrinhos). Michael B. Jordan (que estrelou os dois filmes anteriores de Ryan Coogler) interpreta o principal vilão Erik Killmonger. O ator revelou haver se inspirado no Coringa de Heath Ledger e no Magneto de Michael Fassbender. O resultado final é um vilão aquém dos dois, mas isso não deve ser mal interpretado, pois o personagem de Ledger é o maior vilão do gênero e um dos maiores da história do Cinema, enquanto o Magneto apresentado em First Class foi uma das melhores decisões dos filmes dos X-Men. Em outras palavras, Killmonger dificilmente será tão lembrado quando os personagens que o inspiraram, mas permanece sendo um dos vários acertos de Pantera Negra e um dos melhores vilões do MCU (ao lado de Hela e Abutre). O ator entrega uma ótima performance e o personagem possui motivações sinceras que só contribuem às críticas político-sociais do filme. Ao passo em que o Killmonger faz tudo por motivos muito bem justificados (basicamente baseados em toda a opressão de séculos sofrida pelos negros), a raiva o torna errado, e é o que o separa de Nakia (Lupita Nyong'o).
Tanto Erik quanto Nakia fazem o contraponto às ideias conservadoras de T'Challa, que defende a omissão (e portanto exclusão dos problemas mundiais) de Wakanda, abrindo discussões sofre acolhida de refugiados executada por vários países da Europa e sobre a política de Donald Trump com relação a estrangeiros. Trata-se, portanto, do filme mais corajoso da Marvel, pois escolhe lados e finca opiniões, em vez de apenas lançar discussões para em seguida temer resolucioná-las (como quase sempre ocorre com os blockbusters).
Não é novidade que o filme possui duas cenas pós-créditos, mas não são tão relevantes quanto as de adaptações anteriores. A primeira é muito boa, mas poderia muito bem estar dentro do filme, uma vez que não introduz nenhuma outra produção futura (provavelmente foi deixada entre os créditos para que não tirasse o peso da cena final). A segunda é bem menos relevante de modo geral.
Em breve Guerra Infinita e Homem-Formiga e Vespa terminarão de nos mostrar o que o universo cinematográfico alcançou após dez anos, mas Pantera Negra já nos dá uma resposta satisfatória, pois todas as suas conquistas parecem muito mais progressões naturais da experiência do estúdio (de nada adiantaria Coogler e o co-roteirista Joe Cole possuírem tantas ideias se não as pudessem executar) do que a necessidade de realizar agendas sociais sem autoconsciência.
Lucas Giesteira
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