Conto: O acaso definitivo
Em um chuvoso dia de outubro, uma jovem saiu de casa,
brigada com o irmão mais velho. Ao longo dos primeiros minutos caminhava sem
rumo pelo bairro, até que se lembrou de uma praça que se localizava próximo ao
prédio em que vivia a sua falecida melhor amiga.
A lembrança trouxe um momentâneo aperto em seu coração, mas
aquele era o lugar mais próximo para onde poderia ir naquele momento difícil.
Ao chegar, caminhou pelo barro coberto de folhas molhadas.
Já era fim de tarde, e a chuva transformou-se em garoa. A garota avistou uma
mesa de madeira ao centro da praça, e lá se estabeleceu.
Ela estava no início da fase adulta, e só podemos imaginar
os conflitos mais diversos em sua mente. Universidade, emprego, relacionamentos,
o insistente trauma pela morte da amiga. Estes são os palpites mais óbvios.
Além disso, claro, a questão daquele dia: a briga com o irmão. Estaria ela
relacionada a alguma das hipóteses anteriores? Seria uma briga isolada, gerada
por algum motivo fútil? Ou talvez nenhuma das hipóteses anteriores sequer chegue
perto da realidade.
Ela estava ali, sentada, e cada gota que caía em seu corpo
parecia motivo de orgulho, como medalhas pela sua dor, ostentando para qualquer
um que passasse pela praça. Mas não havia quase ninguém passando por lá. Quando
chegou, cruzou caminho com um homem de meia idade, que estava andando muito
rápido, provavelmente para chegar a seu destino e livrar-se o mais rápido
possível da chuva. Após cerca de meia hora, passou por lá uma senhora de guarda-chuva que levava o seu cachorro de madame para passear.
A praça era de formato triangular, cercada por três ruas.
Ali havia um prédio e várias casas, algumas grandes e outras médias. Era um bom
bairro, certamente. Não se tratava de uma praça malcuidada, de forma alguma,
mas carecia de algum carinho extra, por parte dos moradores locais. Pelo menos
um terço dela era apenas barro, e o restante preenchido por uma grama bem
aparada. Havia um escorregador pequeno, um balanço e um pequeno túnel em forma
de trem.
Após uma hora já havia começado a escurecer, e então um
rapaz chegou e sentou-se em um banco de madeira, em uma das extremidades do
local. Era muito pálido, com olheiras profundas e cabelos negros, nem muito
compridos e nem muito curtos.
Que fique claro que esta não é uma história de paixão,
aqueles dois jamais teriam algum envolvimento amoroso, sequer iriam se falar.
Mas a jovem notou como o garoto, que aparentava ter aproximadamente a mesma
idade, parecia vazio. É curioso perceber como alguém pode parecer vazio. A
garota sequer precisou esforçar-se para notar tal fato. Ser vazio não significa
ser fútil, o que aparentemente é muito mais difícil de se observar a tão curto
prazo. Ser vazio implica em um vazio existencial. Algumas pessoas vivem pelos
prazeres mundanos, outros vivem para tornar o mundo um lugar melhor e fazer a
diferença. Há, porém, aqueles que não se maravilham com o prazer em excesso e
ao mesmo tempo não simpatizam com a humanidade ao ponto de almejar fazer a
diferença. Não são ambiciosos porque ainda não descobriram um motivo pelo qual
lutar. Às vezes nem mesmo a sobrevivência parece uma causa à altura.
A jovem enxergou tudo isso no rapaz. O vazio de sua alma,
congelada talvez há muito tempo, talvez recentemente. Talvez a garota estivesse
completamente errada, talvez o garoto estivesse apenas em um dia ruim, como o
dela. Mas não, ela tinha certeza de que estava certa.
Após alguns minutos ali, sentado, o jovem olhou para a
jovem, e naquele instante ela percebeu que não foi apenas aquele dia que deu
errado, que aquela foi apenas a foz de um longo rio de decisões confusas e má
sorte; não só dela, mas também daqueles que fazem parte de sua vida. Então a
moça percebeu que a sua alma estava tão vazia quanto à daquele anjo de pouca
luz, que lamentava a sua existência; e que veio avisá-la, mostrar que não são
apenas os outros que se deparam com enormes abismos ao longo de suas caminhadas, que nenhum de
nós pode sair ileso disso.
A garoa acabou, e após perceber tal fato, a moça também
notou que o rapaz não estava mais ali. Já era de fato noite, e ela poderia
haver interpretado o fim da chuva como um sinal de que tudo iria melhorar, mas sabia
que não, que nada melhoraria. Então ergueu-se e caminhou de volta para casa,
querendo acertar-se com o irmão, querendo ainda naquele dia começar a acertar a
própria vida e encontrar suas duas pessoas interiores: a que havia perdido há
algum tempo e a que nunca havia conhecido. Ela sabia que a visita do rapaz e o
fim da garoa não significavam nenhuma melhora mágica ou sobrenatural em sua
vida, a menos que ela enxergasse no acontecimento um ponto de partida para a
forma como ela mesma mudaria a sua interpretação a respeito da existência.
Lucas Giesteira
Leitura leve, porém profunda. Deliciosa de saborear. O conto me envolveu e surpreendeu com reflexões pontuais e certeiras. Mesmo apresentando um cenário melancólico em seu princípio, achei belo como fomenta esperança em sua conclusão. Amei demais esse excerto:
ResponderExcluir"Então ergueu-se e caminhou de volta para casa, querendo acertar-se com o irmão, querendo ainda naquele dia começar a acertar a própria vida e encontrar suas duas pessoas interiores: a que havia perdido há algum tempo e a que nunca havia conhecido (...)".
Escreva mais vezes, Lucas! Sua escrita é de encher os olhos e a alma ^^
... e cada gota que caía em seu corpo parecia motivo de orgulho como medalhas pela sua dor..
ResponderExcluirAdorei esse trecho 💜