Conto: A alma insurgente
Estava passeando pelo bairro quando vi uma linda moça
sentada na calçada, triste. Não é importante descrever a sua aparência, poderia
ser de qualquer tipo, pois a beleza estava no que representava. No mesmo
instante quis me apaixonar por ela, como nas histórias que nos são contadas por
toda a existência. Queria que nossos olhares se cruzassem e subitamente
entendêssemos que cada mínima frustração, alegria ou coincidências de nossas
vidas serviram para nos levar àquele momento crucial.
Mas eu sabia, sabia que nada aconteceria, sabia que tudo
ficaria no campo dos sonhos, sem poder sair, sem poder respirar, em pura
claustrofobia imaginária. O amor existe, ao contrário do que alguns pessimistas
baratos afirmam, mas não em um mundo como este. Os relacionamentos desta
realidade são água do mar bebida por indivíduos mortalmente desidratados,
enlouquecidos.
Passei pela ideia, que ainda estava sentada, talvez mais
entristecida do que antes. O céu escureceu; ouvi o som de trovão, após um
lampejo. Corri por meio quarteirão, fugindo da súbita chuva de verão. Parei,
olhei para trás, a garota ainda estava ali. Senti uma forte compaixão
estourando pelo meu peito, não podia deixá-la, ao menos não sem uma honesta
tentativa.
Voltei. Dirigi-me a ela com costumeira timidez, perguntando
se não queria me acompanhar para nos abrigarmos da chuva. Logo pensei em como
aquilo soava estranho, em um mundo tão repleto de abusos e sequestros.
Estranhamente a ideia aceitou, e juntos fomos até a lona de um estabelecimento
fechado.
Logo percebi que a moça não era introspectiva por natureza:
algo acontecera. Demorei alguns minutos refletindo se era prudente perguntar,
ou até mesmo me oferecer para dar apoio moral. Optei por jogar tudo aos ares e
perguntar o que havia acontecido. A sua melhor amiga suicidou-se na semana
anterior. Ó, pobre coitada, tão jovem para vivenciar tal tipo de amargura.
Ofereci minhas condolências por alguns instantes, e pontuei
que se ela quisesse contar mais, seria todo ouvidos. Ela recusou o convite, e
decidi que jogar conversa fora seria uma boa ideia. Aparentemente funcionou, a
moça até deu uma sucinta risada, por um momento. Por fim a chuva encerrou-se e
não tardou a nos levantarmos para seguirmos os nossos rumos.
Naquela noite sonhei com meu falecido pai. Eu estava no sofá
de meu antigo apartamento, simplesmente sentado, sem fazer nada. Era noite e a
lâmpada da sala era a única acesa. O vulto que eu ainda desconhecia estava no
final do corredor que levava aos quartos. Quando veio para a luz, logo o
reconheci, apesar de estar envelhecido de tal maneira que nunca ocorreu. Talvez
estivesse assim, se ainda vivo. O seu olhar estava triste, como se soubesse de
meu futuro. Demorei a perceber que havia outra figura, ainda em forma de vulto,
atrás de meu pai. Ao se mostrar, vi o homem jovem, pálido e com olheiras
profundas. Seus cabelos eram curtos e negros como a escuridão que o cercava até
então. Havia carinho em seu olhar.
Acordei subitamente, assustado. O meu pai foi uma figura
central em grande parte da minha vida, antes de sua morte prematura; mas o
segundo vulto jamais conheci. O que isso significa? Só consigo pensar na
garota, mas por quê?
Posso dizer seguramente que nunca amei, nem ao menos me
apaixonei para pouco tempo depois sentir-me um idiota. Sei que não sinto
isso pela garota, mas algo dela fincou em minha mente, e está doendo.
Saí de casa. No celular o horário marcava três horas da
madrugada. Passei por um gato preto na rua, que começou a me acompanhar como um
anjo da guarda. O vento arranhava, arranhava o meu rosto. Caminhei por cerca de
vinte minutos, quando cheguei a uma praça triangular. Então percebi que já não
pensava mais na garota, ou no vulto, ou em meu pai. A amiga, por que havia
cometido suicídio?
Comentários
Postar um comentário