O potencial do Coringa cinematográfico
A Warner Bros. está discutindo seriamente a possibilidade de
um filme do Coringa que não se passa na realidade dos filmes atuais (e,
portanto, não seria interpretado por Jared Leto). Estão interessados em
Leonardo DiCaprio para o papel, e colocaram ninguém menos do que Martin
Scorcese na produção do projeto. Isso tudo nos traz de volta à
reflexão/discussão: o que é um bom Coringa para os dias de hoje?
Quando se discute o que é o Coringa, o que ele representa,
como ele age; deparamo-nos logo de início com divergências, uma vez que o
cânone não só do Palhaço do Crime, mas dos quadrinhos de super-herói em geral,
é imenso. Desde a sua versão da chamada Era de Ouro (1940) até as últimas
histórias dos Novos 52, o personagem é constantemente reinventado e adequado às
necessidades de cada história e de cada público. Contudo, se levarmos excessivamente em
consideração a possibilidade inúmeras versões do personagem, caímos diretamente
no perigo da relatividade. Se toda versão é válida, qualquer direção pode ser
tomada.
O personagem atualmente possui 77 anos de inúmeras
histórias, mas sempre nos lembramos das mesmas: A Piada Mortal (Alan Moore), Asilo
Arkham (Grant Morrison), O Cavaleiro
das Trevas (Frank Miller) como referências máximas dos quadrinhos; Coringa (Brian Azzarello), Morte em Família (Jim Starlin, criador
do Thanos da Marvel), A Morte da Família
(Scott Snyder), Fim de Jogo (Scott
Snyder), O Homem que Ri (Ed Brubaker,
criador do Soldado Invernal) e outras como segundas referências; e por fim os
Coringas das outras mídias (Cesar Romero, Jack Nicholson, Mark Hamill, Heath
Ledger e agora Jared Leto), em que eu diria que metade dos casos mais consiste
em referência pop do que qualitativa.
Antes de prosseguir, preciso enquadrar a questão qualitativa
para os padrões atuais, e portanto admitindo anacronismo ao olhar para os
Coringas de Cesar Romero e Jack Nicholson. Trata-se da minha opinião, mas
acredito que muito do amor ao segundo consiste mais na nostalgia do primeiro Coringa
cinematográfico do que de fato na qualidade inquestionável da atuação e criação
de Nicholson e Tim Burton. Quando o filme foi lançado as clássicas versões de
Frank Miller e Alan Moore já haviam sido publicadas, e se nos mantermos na
questão do anacronismo, mesmo versões posteriores (como a de Grant Morrison)
destronam a versão do filme de 1989, ainda mais se levarmos em consideração
vícios hollywoodianos de relacionar o passado do herói ao vilão (o homem que
viria a ser o Coringa assassinou os pais de Bruce Wayne). Já em relação à
versão da série de 66, fica fácil afirmar o porquê de esse Palhaço do Crime não
se enquadrar nos dias de hoje. Quando se olha de maneira não anacrônica, o
valor dessas duas interpretações é inestimável, mas o que desejo fazer aqui é
um olhar mais prático para o que deve servir para nós agora.
No caso dessas duas primeiras versões live action, diminuí a
qualidade das versões frisando muito a questão do foco anacrônico, mas quando
se trata a última versão, a de Leto, a qualidade é baixa desde o momento em que
o filme foi lançado, é verdadeiramente baixa. Neste caso eu diria que os
problemas são basicamente todos: roteiro, caracterização (psicológica e
visual), roteiro, direção e edição. Muitos dizem que a culpa é de todo o resto,
menos da atuação de Leto, mas discordo. Se aquele Coringa extremamente caricato
aparecesse em mais cenas talvez ficasse ainda mais irritante. O Coringa é um
personagem caricato já em sua essência, mas existem tipos e tipos de
caricatura. A própria versão de Heath Ledger (que considero a melhor do Cinema
e uma das melhores no geral) é caricata a partir do momento em que vemos um
louco de terno roxo com maquiagem constantemente, mas por dentro ele é um
personagem sério com questões reais. O Coringa de Jared Leto é tão caricato
quanto os personagens mais caricatos de Jim Carrey. Soma-se a essa visão os
cortes terríveis de Esquadrão Suicida
e a história/diálogos pobres escritos por David Ayer. Porém, admito gostar
muito das feições dessa versão (o que a torna muito boa para papéis de parede e
pôsteres. Gostei das decisões envolvendo sobrancelhas, cabelo e maquiagem. Só
foi muito difícil relevar as tatuagens absurdamente caricatas e a sexualização
absurda de um personagem que jamais deveria ser considerado bonito (ao menos
agora os homens entendem como as mulheres se sentem com a maioria das
personagens femininas).
Como já foi dito, de 77 anos de quadrinhos, apenas uma média
de 10 HQs são realmente tidas como o cerne do que o personagem é hoje, porque é
basicamente impossível que a proporção de clássicos dentro de quase 8 décadas
seja grande. Muitas histórias ruins e medianas são escritas nesse período, e
talvez algumas realmente boas, mas que ficaram para trás e se encaixam mais na
época em que foram escritas. No primeiro caso me refiro a todos os períodos,
mas com mais destaque para o Coringa da Era de Prata dos quadrinhos, em que
havia o selo (Comic Code Authority) que proibia que os quadrinhos tivessem
conteúdo mais “pesado”, e por isso o nosso Mr. J tornou-se nas HQs a versão
abobalhada que posteriormente vimos na série de TV. Nos segundo caso me refiro
ao Coringa da Era de Ouro, em seus primeiros anos, quando o personagem era de
fato um psicopata. A qualidade da caracterização e das histórias era realmente
boa, mas tinha muito o peso da época (desde diálogos até vestimentas e
cenários). O que os posteriores clássicos já citados fizeram foi justamente
trazer de volta a psicopatia do personagem para contextos mais atuais (que
mesmo nos anos 80 e 90 continuam atuais) e com uma imersão mais rica no que é a
loucura. Desta forma, o material da Era de Ouro é bom, mas eu não diria que é
essencial, por exemplo, para um ator estudar o personagem antes de
interpretá-lo. Muitas vezes é mais válido fazer-se um recorte menor com uma
análise mais focada do que um maior com uma análise mais distante.
Assim sendo, consideraria as versões de primeiro escalão a
de Heath Ledger, Mark Hamill (série animada e jogos), Alan Moore, Grant
Morrison e Frank Miller. Dentre as de segundo escalão, a que eu mais gosto é a
versão de Scott Snyder, dos Novos 52. Por mais que eu goste de imaginar o
personagem como uma entidade, odeio a decisão de Fim de Jogo de colocar o personagem como um ser imortal, mas
deixando isso de lado acredito que Snyder retomou a questão do Coringa como
personagem de terror, como em sua primeira aparição em A Morte da Família. É
comum ficarmos chocados com atitudes do personagem, como os assassinatos
cometidos pela versão de Ledger, mas isso não significa que são aterrorizantes
no sentido de gênero Terror. Acredito que quadros específicos desenhados por
Capullo para as histórias de Snyder devam ser mais levados em consideração no
futuro cinematográfico do personagem. Em 2015, quando comentava na Internet que
não gostava da aparência geral (não do rosto, como disse anteriormente) da
versão de Leto, muitas pessoas me respondiam que importante é o roteiro e a
atuação. Não, cada elemento possui a sua devida importância, e a parte visual é
essencial. Até mesmo em livros, que consistem em folhas preenchidas por
palavras, os autores utilizam-se da habilidade de descrição para que o leitor
imagine a parte visual. A questão imagética não consiste apenas na aparência do
personagem em si, mas em como ele é colocado em cena. Nesse caso acredito que A Morte da Família seja uma das maiores
referências. Acho a arte de Asilo Arkham
sensacional, mas infelizmente (assim como em Sandman) é praticamente impossível transportar a arte de Dave
Mckean para o live action. Porém, até onde for possível, acho mais do que
essencial levar essa arte em consideração.
Além da óbvia semelhança entre It (atualmente em cartaz) e o Coringa, por se tratarem de palhaços,
acredito que o aclamado filme tem algo muito rico a contribuir: o passeio entre
gêneros. Muito se elogia sobre a adaptação do livro de Stephen King ser capaz
de deixar o espectador com muito medo e também fazê-lo rir e sentir-se mais
leve, conforme a necessidade da cena. O Coringa é um personagem riquíssimo, e
um filme que o trate de forma igualmente rica precisa fazê-lo um personagem
realmente engraçado e divertido (como na interpretação de Hamill na animação
dos anos 90), aterrorizante de no sentido do gênero Terror (como em Greg
Capullo e Scott Snyder), aterrorizante por suas ações (como em Moore, Morrison,
Miller e Ledger), e também com um toque afetado (como em Miller, Morrison, e –
aí sim – em Leto). Não se trata, porém, apenas de utilizar esses elementos, mas
saber em que momentos eles cabem, saber o timing certo. Por exemplo, se o
personagem for utilizado como em filme de terror, aparecendo de relance,
subjetivamente, ao longe e no escuro; isso obviamente precisa ocorrer ao início
do filme, antes de o personagem aparecer por completo posteriormente. É preciso
também dar uma especial atenção para o marketing. Mais uma vez utilizando It
como referência, os trailers mostram o palhaço, revistas o mostram mais ainda,
mas o elemento surpresa ainda está no filme, em peso. De todos os erros do
Coringa de Jared Leto, o marketing está na mesma medida que o restante.
Por fim, retomando a parte estética, uma grande questão da
versão de Esquadrão Suicida foi se diferenciar da versão de Ledger/Nolan. Isso
me parece desnecessário, uma vez que a própria versão de Nolan se diferencia
dos quadrinhos, ao adotar o estilo realista da trilogia. Ou seja, para se
afastar da versão de 2008, bastava voltar às raízes, considerando que o único
live action realmente fiel aos quadrinhos foi o de Nicholson, de (agora) 28
anos atrás. Contudo, nem tudo funciona perfeitamente em live action, e o visual
de Nicholson é muito limpo. Acho muito bem vindo um Coringa com a pele toda
branca, porém deformada (considerando que foi corroída no ácido). Isso
permitira tanto um toque mais grotesco quanto uma maquiagem mais rica para a
produção. Gastar mais tempo maquiando uma pele corroída e menos tempo maquiando
uma pele tatuada com “hahahahaha”. Sempre se deu muita atenção para alargar a
boca do ator, tanto apenas com maquiagem (Romero), quanto com próteses (Nicholson
e Ledger). Este é um dos pontos em que defendo as decisões da versão de 2016,
com batom apenas na boca. Acho que isso pode ser levado adiante, até que se
torne lugar comum novamente, e voltar às próteses volte a ser algo fresco. Acho
também muito válido utilizar lentes de contato, desde que elas auxiliem no
aspecto macabro (mais uma vez usando a versão dos Novos 52).
A parte mais difícil de se adaptar algo consiste em fazer
jus a tudo o que foi feito previamente e aos próprios fãs. A parte mais fácil é
saber tudo o que funciona e o que não funciona. Sempre há a questão da opinião,
sendo todo o exposto até aqui a minha, mas se esse elemento fosse realmente tão
relativo, todas as histórias seriam clássicos. Sempre existem opiniões mais
próximas de um consenso.
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